Rio de
Janeiro, Estádio do Maracanã, 13 de julho de 2014. Após um jogo morno e sem
gols, Brasil e Uruguai disputam nos pênaltis a Copa do Mundo. Após nove
cobranças, o placar está 4 a 3 para o Uruguai. Neymar irá bater o último
pênalti para a seleção canarinho. Se ele fizer, iremos para as cobranças
alternadas, caso contrário, o Uruguai será campeão. Muslera no gol. O jogador
brasileiro começa a caminhar lentamente em direção à área. Momento de tensão no
Estádio. No meio da torcida temos dois intelectuais franceses: Paul Ricoeur
observa atentamente a caminhada do atleta do Barcelona, enquanto François Furet
olha distraidamente as arquibancadas lotadas do Jornalista Mário Filho.
Paul Ricoeur – E
aí, François... Neymar faz essa ou não?
François Furet (Voltando
a si) – Que?... Ah, não sei... O Neymar é o grande craque da seleção brasileira...
PR – Sim, isso é
verdade. Mas lembre-se quantas vezes craques já erraram pênaltis em momentos decisivos!
FF – Sem dúvida,
é só pensar no Baggio na Copa de 94...
PR – Ou aquele
Brasil e França na Copa de 86. Zico, Sócrates e Platini errando pênalti no
mesmo jogo! Aliás, vamos ser sinceros, aquele jogo foi uma verdadeira tragédia.
Eu fiquei muito feliz com a vitória da nossa França, mas a seleção brasileira
era indiscutivelmente superior e sem dúvida não mereceu o infortúnio do qual
foi vítima. E aquele pênalti cobrado pelo Bellone que bateu na trave, nas
costas do Carlos e entrou? O acaso definitivamente estava contra o Brasil naquele
dia.
FF – E será uma
nova tragédia se o Brasil perder hoje. Aliás, vai ser uma tragédia de qualquer
jeito, estou até vendo as histórias da imprensa amanhã, relacionando a Copa de
50 com a 2014, todo o tipo de história que eles vão contar tratando essa final
como um acontecimento...
PR – Como assim,
François?
FF – É um
problema em relação ao meu ofício. Veja bem, Paul. Eu, como historiador, não
nego que a história é filha da narrativa. No entanto, essa história-narrativa
já há muito tempo teve seus problemas denunciados. Imagine, por exemplo, se o
Muslera pegar esse pênalti. Amanhã nos jornais uruguaios não faltarão
biografias do goleiro uruguaio, pegarão fatos dispersos por sua vida e darão
a eles um novo significado colocando-os em uma ordem teleológica apontando para
o pênalti defendido. Quer dizer, é uma óbvia falsificação que coloca um
acontecimento como resultado necessário do passado.
(Neymar chega à marca
do pênalti e começa a ajeitar a bola)
PR – Mas qual o
problema quanto a isso, mon cher ami?
Não é exatamente isso que todo historiador faz? Ora, a função de vocês é
exatamente o de compor uma intriga, praticamente a mesma coisa que um escritor
de literatura faz. O que eu quero dizer é que vocês pegam acontecimentos, os
ligam utilizando traços estruturais, simbólicos e temporais que já existem no
campo prefigurado da experiência, e os transforma em uma história considerada
como um todo. Esta narrativa vai, por fim, ter sua legibilidade e adquirir seu
sentido pleno quando atingir o leitor, que a restitui ao nível do agir. Você
acabou de falar do Baggio, não? Lembra-se daquele comercial da Johnny Walker
com o Baggio? (Furet faz um sinal
afirmativo com a cabeça) Pois bem, tomemos como exemplo. Temos dois fatos
separados no tempo e sem nenhuma relação aparente: o pênalti perdido na final
de 94 e outro marcado contra o Chile na de 98. No entanto, o autor do vídeo
consegue, pela configuração que ele constrói com esses dois acontecimentos,
estabelecer uma história entendida como um todo e que atinge o público, entendido aqui como o potencial consumidor..
FF – Mas é
exatamente isso que eu critico na história-narrativa! Temos dois acontecimentos
que não tem absolutamente nada a ver um com o outro e que só adquirem
significado pelo encadeamento construído pela montagem do vídeo. Trata-se, no
fundo, de uma contradição!
(Muslera,
seguindo a tradição uruguaia, começa a catimbar e atrasa a cobrança. Reclama do
posicionamento da bola, diz que alguém na torcida está apontando um laser em
seu olho,,, Tudo para tentar tirar a concentração de Neymar.)
PR – Exato! Uma
contradição que é resolvida poeticamente. Pensemos no agora e em todos os
significados que essa cobrança de pênalti que está prestes a acontecer e em
todos as possibilidades de história que podem derivar daí. Como você já disse,
se o Muslera defende, amanhã todo o Uruguai estará repleto de biografias nos
jornais e na televisão. Jornalistas pegarão os mais diferentes fatos de sua
vida e os colocarão nas mais diversas narrativas, umas começando no seu
nascimento, outras quando ele começou a jogar futebol ou ainda quando foi
chamado pela primeira vez para a seleção, mas todas organizadas em função desse
acontecimento final que é a defesa do pênalti, entendida como a realização última de sua vida. Por outro lado, no Brasil não
faltará quem fará o mesmo para o Neymar, mas de maneira totalmente negativa.
Talvez, se numa próxima Copa do Mundo o Neymar levar o Brasil ao título, este
mesmo pênalti pode aparecer como o começo de uma outra narrativa, dessa fez de
superação. Pegue o próprio pênalti do Baggio em 94 como exemplo: para muitos
aquele episódio significou o final da biografia dele – a maioria não sabe que
ele foi campeão italiano e da Copa da Itália depois disso, ele ficou sendo “a
estrela da seleção italiana que perdeu o pênalti decisivo”, mais ou menos o que
pode acontecer com o Neymar caso ele erre. Já para o comercial da Johnny Walker
aquele acontecimento foi o começo de uma outra narrativa, dessa vez de
superação. Há ainda a hipótese de o Neymar fazer o gol, e neste caso iremos
para as cobranças alternadas e esse pênalti será apenas um dos acontecimentos
no meio de uma outra narrativa, e, portanto terá um outro significado.
FF – Mas qual o
motivo de você estar falando isso? Ainda não sabemos o resultado da cobrança.
PR – Sim, de
fato você está certo. Só podemos tirar conclusões desse jogo após o resultado
do pênalti. Se pensarmos uma partida de futebol como uma narrativa, só podemos
tirar uma conclusão dela quando ela estiver concluída. Somente então seremos
capazes de considera-la como uma totalidade e apreender os seus acontecimentos
como conduzindo ao fim, o resultado do jogo. É o “sentido do ponto final”. Concordo
plenamente com você, estava apenas refletindo sobre como um mesmo acontecimento
pode ter significados diferentes em função das diferentes configurações
construídas por aquele que escreve a narrativa.
FF – Mas aí que
está o problema, você iguala o trabalho do historiador ao do literato. Ambos
podem escolher livremente o começo e o fim de sua história, os acontecimentos
que estão no meio desses dois pólos. E por aí vai.
PR – Não digo
que são exatamente a mesma coisa, mas são sem dúvida trabalhos bastante
similares. A diferença reside basicamente no fato da historiografia reivindicar
uma referência na realidade, mesmo que passada. Mas não há como negar que esse
tipo de referência é muito parecida com a referência metafórica típica das
obras poéticas. Lembre-se: é a imaginação que reconstrói o passado. Mas se você
não gosta disso, o que propõe?
(Finalmente o
juiz da uma dura em Muslera. Este se cala e começa a caminhar de volta para o
gol).
FF – Eu defendo
a passagem de uma história-narrativa para uma história-problema. Mais ou menos
como os Annales fizeram. Mas eu ainda
acho que podemos ir além, uma simples história-problema ainda encontra limites
bastante restritos. Imaginemos se no futuro um historiador das mentalidades
queira, a partir dessa partida de hoje, escrever sobre a relação do brasileiro
com o futebol nas primeiras décadas do século XXI. Ela será, sem dúvida, uma
história superior àquelas narrativas de estilo biográfico que os jornalistas escreverão
amanhã, uma vez que terá que formular um problema e explicitar os elementos de
explicação por ele formulados, substituindo assim a simples inteligibilidade do
passado em função do futuro. Mas ainda assim terá que enfrentar o caráter
inevitavelmente subjetivo do testemunho histórico. Ele pode até chegar a uma
descrição boa do seu objeto, mas ainda assim encontrará problemas para definir
uma interpretação com um grau de certeza razoável. Acredito que se chegaria a
um maior rigor se lidássemos com indicadores mensuráveis fazendo uma história
quantitativa ou serial. Poderíamos pegar dados estatísticos de todas as Copas
desde, por exemplo, 1950 até hoje. Dados tais como média de público, renda
gerada, gastos com construção de estádios, audiência da televisão e do rádio.
Comparando os dados coletados, poderíamos encontrar uma explicação para a magnitude
que eventos desse tipo tomaram.
PR – Ora... E
você que agora a pouco reclamou da imprensa comparando a Copa de 50 com a de
agora...
FF – Mas Paul, são
coisas diferentes! Não se trata mais de pegar dois acontecimentos distantes no
tempo e força-los dentro de um mesmo texto. Na minha proposta é o historiador
quem constrói os seus fatos e explicita
os seus métodos. Ele vai pegar dados
dispersos, reorganizá-los em série e homogeneizá-los de maneira a estabelecer
unidades cronológicas comparáveis. É certo que a História não se tornará uma ciência, visto que continuamos com a indeterminação de nosso objeto, mas sem dúvida é uma maneira mais rigorosa de abordar o passado.
(Tudo pronto para a
cobrança, o juiz dá uma última olhada ao redor para garantir que está tudo certo)
PR (com um leve sorriso irônico por observar a
inocência do colega) – E você acha que assim estará livre da narrativa?
FF – O que você
quer dizer com isso?
PR – Quero dizer
que você entende narrativa em um sentido muito restrito. Narrar não é somente
configurar acontecimentos, é também buscar significados e fazer análises...
(O juiz autoriza, Neymar
começa correr.)
FF (Interrompendo Ricoeur) – Ça va, depois continuamos nossa conversar
sobre isso, pois se o jogo é uma narrativa, podemos estar presenciando agora o
seu final!
(Neymar chuta...)
Daniel Nogueira Polleti - noturno - nº USP 6453556
A narrativa de Daniel abordou muito bem as posições metodologicas de Furet e a concepção de narrativa de Ricoeur através das opiniões sobre dois episódios históricos que podem ser comparados de diferentes formas, dando origem a diferentes tipos de intriga, segundo a teoria de Ricoeur. O trecho final
ResponderExcluir" PR – Quero dizer que você entende narrativa em um sentido muito restrito. Narrar não é somente configurar acontecimentos, é também buscar significados e fazer análises..."
ajuda bastante a compreender o ponto de conexão entre as abordagens de cada autor, à partir do raciocínio de Ricoeur.
Rogério Ricciluca Matiello Félix, nº USP 7198380
Ótimo texto, atendeu à proposta de realizar o diálogo tendo como objeto de análise a partida de futebol e a partir daí conseguiu concatenar os conceitos dos dois autores, ora os aproximando, ora os afastando, sem prescindir de toques de humor.
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