O nome do protagonista do filme Mr. Nobody surge, por coincidência ou não, ao final do primeiro
verso de uma popular parlenda cantada pela mãe: "Eeny, meeny, miny,
moe", quando as últimas duas sílabas -ny
e moe formam o som do nome
"Nemo" em inglês. A questão das escolhas é fundamental no decorrer do
filme, desde a seleção dos pais antes do nascimento até o surgimento de uma
gama de escolhas possíveis no futuro, quando Nemo se vê diante de uma escolha
impossível entre o pai e a mãe num momento de separação. A partir da multiplicidade
das escolhas se constrói a multiplicidade das vidas de Nemo, e disto surgem
questões sobre tempo, memória, narrativa, entre outras.
Em Mr. Nobody há
uma grande mistura entre passado, presente e futuro, com as várias realidades
se cruzando, às vezes na forma de sonhos, quando Nemo passa de uma realidade
acordando em outra e alegando ter sonhado com a primeira. No entanto, como se
percebe ao final, do começo ao fim do filme tudo ao que se assiste são passados
e futuros (excetos certas passagens atemporais) de um único momento presente: o
momento da separação dos pais e da escolha impossível de Nemo. Como mostra
Agostinho, não existe passado ou futuro, mas sim o passado do presente e o
futuro do presente (além do presente do presente). O grande referente da trama
é o momento singular e presente da escolha impossível. O resto são recordações
ou projeções.
O tempo do filme não é um tempo objetivo, mas o tempo do
protagonista, subjetivo, múltiplo, que se estende aquém do nascimento natural e
se ramifica em diferentes porvires. O tempo segue muitas vezes na direção normal,
mas por outras também regressa na direção contrária. As incertezas, oscilações
e estranhamentos provocados pela estrutura da obra são ainda reforçadas pelas
dúvidas e questionamentos exprimidas pelo próprio protagonista sobre a natureza
do tempo, as escolhas, o amor, o medo e outros temas.
A narrativa do filme é uma construção nada tradicional.
Ela se inicia com a morte ou, melhor dizendo, várias mortes de Nemo e depois o
apresenta mais velho, com 118 anos de idade. Este Nemo velho recordará, então,
diferentes vidas e mortes. A memória do Nemo velho se revela como a imaginação
do Nemo criança do presente, o que nos remete à ideia de que memória e
imaginação não estão distantes uma da outra. Aristóteles já identificava a
relação íntimia entre memória e imaginação, embora não levasse em conta a
qualidade produtora delas que se assume atualmente. A memória é uma forma de
imaginação, um resgate de um passado que é então dotado de significados
simbólicos no presente.
Embora a narrativa do filme seja claramente não linear,
com diversas indas e vindas no tempo, é possível situar cronologicamente cada
momento das vidas de Nemo. O espectador tem condição de traduzir estas descontinuidades
em termos de cronologia e, assim, compreender o filme. Uma narrativa consiste,
de modo geral, como atestam Furet e Ricoeur, em atribuir ordem ao caos dos
acontecimentos. A narrativa, enquanto rede, confere sentido a estes
acontecimentos que, sozinhos, seriam inintelígiveis. Ela é orientada pelo seu
fim e só faz sentido em sua totalidade. Em Mr.
Nobody não vemos, a princípio, a rede ordenada, mas sim o caos de
acontecimentos dispersos que só se torna finalmente compreensível ao término do
filme, quando o espectador tem condições de dar o sentido final à narrativa
como um todo. O rompimento com o modelo narrativo mais tradicional causa
relativo desconforto, no entanto não representa uma inovação total a ponto do
filme não ser compreensível; ele está no meio-termo entre a conformidade com o
padrão tradicional e a inovação radical.
Muito bom o texto. Análise sobre o filme certeira ao pegar a linha da narrativa não-linear, que toma sentido ao seu final, a questão das escolhas que levam a várias possibilidades de vida para Nemo e o comentário sobre imaginação e memória. Gostei do trecho: "O grande referente da trama é o momento singular e presente da escolha impossível. O resto são recordações ou projeções.". Porém poderia ter relacionado um pouco mais com os conceitos de Ricoeur, apesar deste autor já balizar bastante o texto e sobretudo com os de Furet. Mas o texto como um todo está muito bom. Concordo com a crítica ao filme feita no final.
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