sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Ricoeur e Furet conversam com o Sr. Ninguém

                  Ricoeur e Furet conversam com o Sr. Ninguém

Nascer, viver, morrer. Planejar, realizar, esperar, se impressionar: o impensável, o imprevisível está às voltas das linhas projetadas para o futuro. E o futuro existe? Não, ainda não. Então olhamos para o passado: veja o que ele foi, veja tudo que aconteceu. Ele existe, certo? Não mais. Bom, mas e quanto ao presente? Está aqui, agora, pisco os olhos, não está mais. Fugaz, fugidio. Como um animal arredio, não posso segurá-lo em meus braços, ele sempre se vai. O tempo de Agostinho... E o que é, afinal o tempo? O tempo é aquilo que passa pela gente, não existe em si mesmo, de forma particular: o tempo existe no outro. Mas como é, se não existe? A linguagem às vezes parece mais um tropeço... O presente acompanha-nos como pontos de luz. Como vagalumes nas frestas do túnel pelo qual caminhamos. Olhando para as frestas, podemos vê-los por instantes, na atenção dos meus olhos, mas eles sempre ficam para trás, passando a habitar a memória, e os que estão à frente estão escondidos pelo concreto, espero vê-los, mas não há segurança alguma nessa expectativa. Não posso mudar a velocidade: os vagalumes sempre ficarão para trás rapidamente, o tempo escorre. Mas o que importa é que ele agostianamente passa por mim, numa distensão da alma, uma vez que a passagem do tempo é paixão, as coisas que acontecem comigo. Mas o que eu faço acontecer também é parte do tempo e de sua passagem num intentio parte do meu ser. Citando Agostinho presente em Ricoeur: “É 'a intenção presente [que] faz passar (traicit) o futuro ao passado'”. Mudanças e permanências, ser e devir. Por que, afinal, o presente-que-passa não pode ser eternidade-que-permanece? Por isso, oras. Porque o presente é constante mudança: passagem do não-ser – da imprevisibilidade do futuro – para o ser – ainda que fugaz, presente. Sabemos assim que não estamos na eternidade e sim no presente porque o tempo passa por nós, nós envelhecemos, um dia morreremos, o tempo não permanece, escapa a todo momento. Brinquemos um pouco com conceitos: o presente é como o ato – o que é – enquanto o futuro é potência – o que pode vir a ser – e são tantas as possibilidades... A angústia de Heidegger enquanto caminhando para a morte, os desdobramentos futuros acontecendo a partir das escolhas do passado, “o ser humano não pode ser tudo aquilo que poderia ser, não há tempo”. Essa temporalidade da consciência ilimitada, essa angústia permeando nossas escolhas para o projeto de realização humana.

E agora? Com quantas possibilidades se faz uma vida? Com quantas escolhas faz-se um futuro? Talvez aqui coubesse uma citação a André Gorz, que em seu último livro, Carta a D, remonta: “É preciso aceitar ser finito: estar aqui e em nenhum outro lugar, fazer isto e não outra coisa, agora e não sempre ou nunca (...); ter apenas esta vida.” E se Nemo não tivesse ficado nem com o pai nem com a mãe, não tivesse conhecido nem Anna, nem Jean, nem Elise? E se nada do que foi imaginado acontecesse? E as outras possibilidades além dessas possibilidades imaginadas? Nemo existia antes de decidir ser algo? Ou ele existiria depois de feitas suas escolhas? Será que tal como Sartre, Nemo considerava-se livre para fazer suas escolhas, para seguir para onde quisesse mesmo considerando a escolha inicial – decidir ficar com seu pai, ou partir com sua mãe – impossível de ser tomada? Se as escolhas não são tomadas, se as possibilidades não se desdobram ainda se é? Nemo era Nemo antes de tomar suas escolhas? Ou o que ele era já estava nele antes dele ser, antes que ele pudesse existir: necessária, imaterial e universalmente? Não há liberdade individual, Lévi-Strauss? Mas e as várias possibilidades de Nemo, se desenrolando ao mesmo tempo, eram cópias de sua vida “original”, a que ele escolheria num certo momento? Eram, todas elas, muito convincentes. Segundo Aristóteles, a cópia não precisa ser fiel ao modelo, contanto que convença. Portanto, Nemo poderia escolher uma vida e seguir com ela, mesmo sendo totalmente diferente das imaginadas pela cabeça da criança de nove anos, desesperada e confusa, numa plataforma de trem. E se Nemo ficasse mesmo velho? Será que seria como imaginado? Será que se lembraria de seu passado? Será que, como dizia Furet acerca do historiador narrativo, faria um mosaico de seu passado, comparando seus anos, descobrindo assim alegrias ou tristezas? Será que esperaria novidades no futuro? Talvez sorvesse docemente seu presente, satisfeito com suas escolhas, quase adivinhando que a melhor possibilidade é a presente, que o melhor vagalume é o que está diante de seus olhos, nesta frecha, neste momento de presença de realidade em que pode-se viver, percebendo que é pelo ser humano agir no mundo que ele faz o tempo acontecer, faz-no passar e faz também a História se realizar por meio de suas ações e paixões. Como disse Fernando Pessoa, “A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”, num paralelo aristotélico entre essência e aparência. Talvez, tal como Ricoeur defendia, esperaria até o último segundo de vida para analisá-la em “totalidade”, reunindo fragmentos de vida, acontecimentos configurados numa narrativa que só faz sentido enquanto totalidade. Segundo o próprio: “Seguir uma história é avançar no meio de contingências e peripécias sob a conduta de uma espera que encontra sua realização na conclusão. (...) Ela [a conclusão] dá à história um ‘ponto final’, o qual, por sua vez, fornece o ponto de vista do qual a história pode ser percebida como formando um todo.” Mas, nessa refiguração, esperando pelo fim de sua história, que resultaria no fim de si mesmo, teria ele tempo de contá-la a um jornalista? Teria ele tempo de contá-la a alguém? Não. Será que seria ele o espectador só e silencioso de toda sua existência? E, calado e indecifrável, saltaria numa piscina sem fim, rumo ao nada que é a morte? Será que gostou de sua vida? Será que foi o bastante? De fato, nunca saberemos. A história ficcional de Nemo, aqui tratada como algo quase palpável, não é uma narrativa que possa ser contada porque ela não chegou a existir. Terminando com Ricoeur: “Como, com efeito, poderíamos falar de uma vida humana como de uma história em estado nascente, posto não termos acesso aos dramas temporais da existência fora das histórias narradas a propósito deles, por outros ou por nós mesmos?”. O que sobra para nós são apenas suas possibilidades.


Paula Renata Varandas Nº USP: 7559062

Um comentário:

  1. Belíssimo esse texto. Reuniu poeticamente e de maneira concisa e sintética a discussão do curso, a amarrando a autores pertinentes aos temas analisados como Gorz e Pessoa. Ao mesmo tempo o texto ficou claro e leve. Muto bom mesmo!

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