Ricoeur e Furet conversam
com o Sr. Ninguém
Nascer, viver, morrer. Planejar,
realizar, esperar, se impressionar: o impensável, o imprevisível está às voltas
das linhas projetadas para o futuro. E o futuro existe? Não, ainda não. Então olhamos
para o passado: veja o que ele foi, veja tudo que aconteceu. Ele existe, certo?
Não mais. Bom, mas e quanto ao presente? Está aqui, agora, pisco os olhos, não
está mais. Fugaz, fugidio. Como um animal arredio, não posso segurá-lo em meus
braços, ele sempre se vai. O tempo de Agostinho... E o que é, afinal o tempo? O
tempo é aquilo que passa pela gente, não existe em si mesmo, de forma
particular: o tempo existe no outro. Mas como é, se não existe? A linguagem às
vezes parece mais um tropeço... O presente acompanha-nos como pontos de luz. Como
vagalumes nas frestas do túnel pelo qual caminhamos. Olhando para as frestas,
podemos vê-los por instantes, na atenção dos meus olhos, mas eles sempre ficam
para trás, passando a habitar a memória, e os que estão à frente estão
escondidos pelo concreto, espero vê-los, mas não há segurança alguma nessa
expectativa. Não posso mudar a velocidade: os vagalumes sempre ficarão para
trás rapidamente, o tempo escorre. Mas o que importa é que ele agostianamente passa por mim, numa
distensão da alma, uma vez que a passagem do tempo é paixão, as coisas que
acontecem comigo. Mas o que eu faço acontecer também é parte do tempo e de sua
passagem num intentio parte do meu ser. Citando Agostinho presente em Ricoeur: “É 'a intenção presente [que] faz passar (traicit) o futuro ao passado'”. Mudanças
e permanências, ser e devir. Por que, afinal, o presente-que-passa não pode ser
eternidade-que-permanece? Por isso, oras. Porque o presente é constante
mudança: passagem do não-ser – da imprevisibilidade do futuro – para o ser –
ainda que fugaz, presente. Sabemos assim que não estamos na eternidade e sim no
presente porque o tempo passa por nós, nós envelhecemos, um dia morreremos, o
tempo não permanece, escapa a todo momento. Brinquemos um pouco com conceitos:
o presente é como o ato – o que é – enquanto o futuro é potência – o que pode
vir a ser – e são tantas as possibilidades... A angústia de Heidegger enquanto caminhando
para a morte, os desdobramentos futuros acontecendo a partir das escolhas do
passado, “o ser humano não pode ser tudo aquilo que poderia ser, não há tempo”.
Essa temporalidade da consciência ilimitada, essa angústia permeando nossas
escolhas para o projeto de realização humana.
E agora? Com quantas
possibilidades se faz uma vida? Com quantas escolhas faz-se um futuro? Talvez aqui
coubesse uma citação a André Gorz, que em seu último livro, Carta a D, remonta: “É preciso aceitar
ser finito: estar aqui e em nenhum outro lugar, fazer isto e não outra coisa,
agora e não sempre ou nunca (...); ter apenas esta vida.” E se Nemo não tivesse
ficado nem com o pai nem com a mãe, não tivesse conhecido nem Anna, nem Jean,
nem Elise? E se nada do que foi imaginado acontecesse? E as outras
possibilidades além dessas possibilidades imaginadas? Nemo existia antes de
decidir ser algo? Ou ele existiria depois de feitas suas escolhas? Será que tal
como Sartre, Nemo considerava-se livre para fazer suas escolhas, para seguir para
onde quisesse mesmo considerando a escolha inicial – decidir ficar com seu pai,
ou partir com sua mãe – impossível de ser tomada? Se as escolhas não são
tomadas, se as possibilidades não se desdobram ainda se é? Nemo era Nemo antes
de tomar suas escolhas? Ou o que ele era já estava nele antes dele ser, antes
que ele pudesse existir: necessária, imaterial e universalmente? Não há
liberdade individual, Lévi-Strauss? Mas e as várias possibilidades de Nemo, se
desenrolando ao mesmo tempo, eram cópias de sua vida “original”, a que ele
escolheria num certo momento? Eram, todas elas, muito convincentes. Segundo Aristóteles,
a cópia não precisa ser fiel ao modelo, contanto que convença. Portanto,
Nemo poderia escolher uma vida e seguir com ela, mesmo sendo totalmente
diferente das imaginadas pela cabeça da criança de nove anos, desesperada e
confusa, numa plataforma de trem. E se Nemo ficasse mesmo velho? Será que seria
como imaginado? Será que se lembraria de seu passado? Será que, como dizia Furet
acerca do historiador narrativo, faria um mosaico de seu passado, comparando
seus anos, descobrindo assim alegrias ou tristezas? Será que esperaria
novidades no futuro? Talvez sorvesse docemente seu presente, satisfeito com
suas escolhas, quase adivinhando que a melhor possibilidade é a presente, que o
melhor vagalume é o que está diante de seus olhos, nesta frecha, neste momento
de presença de realidade em que pode-se viver, percebendo que é pelo ser humano
agir no mundo que ele faz o tempo acontecer, faz-no passar e faz também a
História se realizar por meio de suas ações e paixões. Como disse Fernando
Pessoa, “A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos
não é o que vemos, senão o que somos”, num paralelo aristotélico entre essência
e aparência. Talvez, tal como Ricoeur defendia, esperaria até o último segundo de
vida para analisá-la em “totalidade”, reunindo fragmentos de vida, acontecimentos
configurados numa narrativa que só faz sentido enquanto totalidade. Segundo o
próprio: “Seguir uma história é avançar no meio de contingências e peripécias
sob a conduta de uma espera que encontra sua realização na conclusão. (...) Ela
[a conclusão] dá à história um ‘ponto final’, o qual, por sua vez, fornece o
ponto de vista do qual a história pode ser percebida como formando um todo.” Mas,
nessa refiguração, esperando pelo fim de sua história, que resultaria no fim de
si mesmo, teria ele tempo de contá-la a um jornalista? Teria ele tempo de contá-la
a alguém? Não. Será que seria ele o espectador só e silencioso de toda sua
existência? E, calado e indecifrável, saltaria numa piscina sem fim, rumo ao
nada que é a morte? Será que gostou de sua vida? Será que foi o bastante? De fato,
nunca saberemos. A história ficcional de Nemo, aqui tratada como algo quase
palpável, não é uma narrativa que possa ser contada porque ela não chegou a
existir. Terminando com Ricoeur: “Como, com efeito, poderíamos falar de uma
vida humana como de uma história em estado nascente, posto não termos acesso
aos dramas temporais da existência fora das histórias narradas a propósito
deles, por outros ou por nós mesmos?”. O que sobra para nós são apenas suas
possibilidades.
Paula Renata Varandas Nº USP: 7559062
Belíssimo esse texto. Reuniu poeticamente e de maneira concisa e sintética a discussão do curso, a amarrando a autores pertinentes aos temas analisados como Gorz e Pessoa. Ao mesmo tempo o texto ficou claro e leve. Muto bom mesmo!
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