segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Nem toda briga de estádio é por causa de futebol...

Influenciado pela historiografia dos Annale, ou pelas empresas de seu amigo Lévi-Strauss com a etnologia estrutural - que, inclusive, falara muito bem de uma terra onde canta o sabiá - François Furet decide que o futebol brasileiro talvez seja algo interessante a ser estudado enquanto dado histórico. O que ele não sabia é que, ao comprar seus ingressos para a final entre o Brasil e Uruguai de 2014, encontraria a cadeira ao lado ocupada por Paul Ricoeur. Constrangimentos à parte, ambos se sentam, um ao lado do outro, no camarote do Maracanã para a grande partida.
_Ilustre momento.
_Muito pelo contrário, arbitrário como qualquer outro, Ricoeur. Diga-me, o que lhe traz aqui?
_Bom, sabe muito bem que eu tenho dedicado um esforço demasiado nos meus estudos sobre as funções heurísticas da narrativa, e por um je-ne-sais-quoi, durante minha licença prêmio, decidi que poderia ser frutífero vir ao Rio assistir a um espetáculo à la manière brésilienne. Sem falar que, em um espetáculo cheio de estatísticas e com pretensões à notação científica, a narrativa surge mais forte do que nunca... Veja esta torcida! Como isto me fascina!
_Suas resoluções poéticas acerca da narrativa em socorro de uma deficiência ontológica do tempo já falam o bastante sobre si mesmas, Ricoeur... Vamos aos canapés e aos proseccos deste camarote, antes que os novos ricos comecem a chegar e acabem com tudo.
_Não, obrigado. Vou me contentar com meus amendoins. E alguém precisa cuidar desse monte de papeis que você leva consigo a todo lugar, não é, Furet?
_Ah, obrigado. Caso queira saber, são notações acerca de todos os placares de jogos da Seleção Brasileira e Uruguaia. Pretendo fazer uma análise de ambas as seleções durante o jogo, para algumas comparações. É impossível pensar nesse jogo de hoje sem a final do Maracanazzo, não acha? Para mim, a análise comparativa dos placares me fará pensar melhor no valor desse jogo posteriormente.
_Você e o estilhaçamento da história, hein, Ricoeur. Por mais que você insista, não percebe que os dados quantitativos não descronologizarão a história, meu caro? A narrativa é em si a experiência temporal humana, e o tempo jamais será um ser em si. O ato de narrar sempre será o de encadear acontecimentos segundo uma causalidade e, por mais que você insista nos modelos quantitativos e seriais, as tensões entre subjetividade e narratividade jamais serão reduzidas. Vá lá ao buffet buscar seus petiscos, o jogo está prestes a começar.
Minutos depois.
_Obrigado, Ricoeur. Segure esta taça um instante, vou pegar minhas notas. Veja cá, Ricoeur. O que quero lhe mostrar é que não há lugar na história para indeterminação conceitual. Embora o ato de narrar seja em si um encadeamento de fatos, os procedimentos me falam mais do que as interpretações feitas, oras! Quero lhe mostrar que, embora eu tenha aqui inúmeros dados acerca de ambas as seleções - 21 títulos uruguaios, 72 títulos brasileiros, 2 taças mundiais uruguaias e 5 taças brasileiras, e tudo mais – minhas análises só me permitem descrever e encadear esses fatos; as interpretações e explicações são minhas, e não das minhas fontes! Aliás, minhas explicações dizem que vão dar Brasil (risos).
_Mas é nisso que sempre nos embatemos, Furet! O narrar da história jamais eliminará sua referência cruzada com a ficção! O fato histórico mantém algo da referência metafórica com as poéticas quando o passado só pode ser reconstituído pela imaginação! Eu prefiro acreditar que o motivo que determina a historicidade dos fatos, como já dizia Heidegger, é o vigor com o qual eles se apresentam.
_É aí que você me contraria, Ricoeur. Os estruturalistas, sacrificando-se em desideologizar as ciências, demonstrando o modo como o homem pode ser reduzido aos seus mecanismos comuns, evitando a eleição de “grandes” assuntos e das grandes evoluções, sem falar nos mitos...
_O que tem produzido narrativas desinteressantes, ao invés de narrativas descronologizadas, por sinal. Furet, você me faz parecer um velho (ainda mais) ranzinza ao falar sobre essas coisas numa final de Copa do Mundo... Mas é preciso lembrar que o ato de narrar é um dado imprescindível da experiência do ser-no-tempo, embora sua careta de estruturalista não negue seu desconforto com esse fato. Assim, o conceito de História do qual estou falando tem um alcance mais amplo se comparado às suas ideias de narrativa... Basta pensarmos que ela exige, antes de acontecer, uma coerência com atributos para que seja tomada como verossímil, sejam suas estruturas, suas fontes simbólicas e o caráter datável e público da temporalidade; em segundo lugar, o seu desenrolar é, acima de tudo, mediar acontecimentos criando uma relação de causalidade e totalidade que formam um todo, uma história; e em terceiro lugar, o ato de narrar tem sua conclusão no ouvinte, que marca a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do receptor. Nem você, nem os estruturalistas conseguem fugir disso, Furet.
_Pois é... Bons entendedores dirão que eu jamais disse algo sobre o fim das narrativas, Ricoeur.
_Mas parecem ter ignorado o caráter dialético próprio da narrativa, como se esta fosse um modelo ordenado e consonante a ser criticado. Esqueceram-se que a narrativa é, por excelência, um modelo de concordância discordante.
_Oras Ricoeur! Você está para a desordem assim como eu estou para a ordem, e ponto final. Deixe-me buscar com a hostess alguns periódicos para consultar os placares dos outros jogos.
_Pois vá! Aposto que perderá o jogo comparando números. Me perdoe, mas estou aqui é para ver a bola rolar!

Alexandre Rocha da Silva, 7164782

Um comentário:

  1. Texto muito bom, manteve Furet ao lado da “ordem” e Ricoeur da “desordem”, como outros posts, mas desenvolveu profundamente a questão da narrativa nos autores, sem desconsiderar certa coloquialidade que um diálogo num estádio de futebol requer. O comentário inicial: “em um espetáculo cheio de estatísticas e com pretensões à notação científica, a narrativa surge mais forte do que nunca” foi bem apontado, visto que os analistas de futebol buscam cada vez mais ser mais “científicos”. Texto bem escrito e interessante.

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