domingo, 6 de outubro de 2013

Furet e Ricoeur ante a falta de amendoim

Galvão Bueno: “Quem diria, Casagrande, quem diria que estaríamos aqui, 64 anos depois, no mesmo Maracanã, numa final de Copa do Mundo. Mais que isso! Quem diria que estaríamos aqui para presenciar um novo espetáculo entre a seleção Canarinho e La Celeste Olimpica! Estamos vivendo um momento histórico, meu amigo! Um momento histórico... É muita emoção! Haja coração! Faça sua festa, torcedor!” 

François Furet: Fala sério, Paul. Esse Galvão Bueno é muito chato. Não sei por que ainda venho a jogos de futebol com o radinho pra ouvir a transmissão. Além de tudo, essa expressão “estamos vivendo um momento histórico” é muito ruim. De que adianta citar um acontecimento no passado, outro no presente, se em nada eles nos ajudam a problematizar esse intervalo de tempo? E cadê os dados, cadê? Ainda bem que fiz minha lição de casa: desde a tão memorável final de 1950, o Brasil venceu 23 dos 42 jogos contra a seleção do Uruguai; fez 70 gols nesses jogos, enquanto os uruguaios fizeram só 34. Isso sim me ajudará a perceber as tão importantes permanências e mudanças, tão características dos estudos históricos. Ainda bem que Galvão decidiu ser narrador de futebol, e não historiador! 

Paul Ricoeur: Pera lá! O Galvão é realmente péssimo, mas por que ser tão ranzinza? É importante situar esses acontecimentos no tempo, contá-los... contar a história é importante! Sem falar que isso de passado, presente, é complicado, né... A propósito, alguém já passou vendendo amendoim? 

François Furet: Que nada. Nesses estádios de última geração não tem espaço pro vendedor de amendoim. 
Paul, de contação de histórias estamos cheios! O que nos falta são bons textos que problematizem a ação humana no tempo, que superem os acontecimentos concatenados numa cronologia.   

Paul Ricoeur: E como você pretende fazer isso, François? Sinto te informar, mas a cronologia é uma representação de tempo. A nossa. E é nela que tornamos inteligível determinado conjunto de ações humanas. E o que teremos aqui hoje? Pelo menos 22 homens em ação! 

François Furet: Não me venha com essa sua teoria inovadora-agostiniana-aristotélica. Suas mimeses não são novidades pra mim. Esse jogo não é histórico por si mesmo. É preciso levarmos em conta jogos anteriores, assim como os que virão, para que o de hoje possa ser passível de problematização. Não à toa passei a noite de ontem contando gols, vitórias, faltas, escanteios, pênaltis, impedimentos..., buscando solucionar as hipóteses que formulei anteriormente. Isso sim é trabalho de historiador! 

Paul Ricoeur: François, François, meu querido amigo. Você se preocupa tanto em não perder os detalhes quantitativos, que se esquece de prestar atenção aos lances do jogo. Preste atenção às pernas ágeis de Neymar e Forlán e não se esqueça de se ater às defesas espetaculares de Muslera! Eles jogam muito! São esses pequenos momentos que promovem o encadear de ações humanas no tempo, e cada um tem, nesse conjunto, sua importância, na mesma medida que o jogo só é importante em função de cada um desses lances ímpares, sejam eles fantásticos ou não. E por que não pensar nesse jogo como um evento, dentre muitos outros que formam a grande história dos jogos entre as seleções brasileira e uruguaia? 

François Furet: O nome disso é história narrativa, Paul. E acho que dificilmente nos entenderemos nisso. Sei que prometemos que, assim que descêssemos do avião, deixaríamos nossas desavenças acadêmicas de lado e aproveitaríamos do clima dos trópicos, mas você sabe como historiador é, né? 

Paul Ricoeur: Não se preocupe, François. Fato é que enquanto divagamos, perdemos eu e você tempo de experiência da narrativa futebolística – a qual, você bem sabe, batizei de mimese III... 

François Furet: Sei. Ô se sei, Paul. Olha aí você de novo, querendo discutir conceitos acadêmicos em plena final de Copa do Mundo. 

Paul Ricoeur: Ah, François. Não tem amendoim! 

Natália Gomes Ferreira (6839069)/Noturno

2 comentários:

  1. Natália, seu texto foi muito preciso ao explicar os conceitos que a gente aprendeu no curso. Essa antepenúltima fala do Ricoeur, especialmente, ficou fantástica. Foi a melhor, e isso que as outras são também muito bem construídas.

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  2. Bom texto, construiu o diálogo tendo a partida como objeto de reflexões e contrapondo a questão da narrativa e da ação humana em Ricoeur e dos dados estatísticos em Furet. Manteve a linha de muitos posts do blog em caracterizar o Furet como mais metódico e certinho que o Ricoeur, mais relaxado.

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