domingo, 6 de outubro de 2013

Entre variáveis, mimese, gols e frango a passarinho.

F: Com licença, com licença. “Cença?” Não, não, não tenho ideia do que seja isso. Ai! Cuidado, oras! Mas dá pra você olhar antes de… Ah! Com todo o caos do mundo, não acredito! Conheço aquelas entradas e óclinhos! Mas não pode ser! Será?! Ricoeur? Ricooeeur? RICOOOEEEUR!
R: FURET! Com mil diabos, que faz aqui? Venha, venha, suba! Tem um espacinho aqui do lado, deixa eu tirar esse… Peraí. Ai, sabia que devia ter deixado todos esses bloquinhos de notas em casa. Só um minutin… Pronto!
F: Que maravilha te encontrar, não conseguia achar um lugar razoável pra sentar e estava quase indo à loucura tentando entender que raio é “cença”... Mas quanto tempo, meu amigo! Não nos vemos há meses e vamos nos encontrar justamente aqui, nesse fim… no Brasil! E num estádio de futebol de todos os lugares.
R: Nem me fale, meu caro! Esse é último lugar… Mas, espera. Você também curte futebol?
F: Ah, não, por Deus, não! Conheci um sujeito dos mais divertidos hoje lá na praia, enquanto mordia o que parecia muito com um pouco de areia na minha caipirinha. Veja só, estava eu lá a caçar grãos de areia ou açúcar e me aparece esse homem todo vestido de Brasil.
R: De Brasil?!
F: Sim, sim, de Brasil. Até o rosto estava verde e amarelo. Juro. Vê se pode! E antes que eu pudesse me perguntar se aquilo escorrendo na testa dele era suor ou tinta, ele abriu o sorriso dos mais desvairados e me perguntou se eu ia ao jogo. “Gringo! Gringo! Jogão hoje, hein? Tu vai?”. Assim mesmo, sem conjugar a segunda pessoa nem nada. Achei o máximo! Engatei o maior papo com o moço-Brasil. “Jogão, gringo, jogão! Brasil e Uruguai. Tu acredita? Brasil e Uruguai! Brasil e Uruguai no Maracanã! Na FI-NAL!”. Comentei que tinha visto alguma coisa, meio de rabo de olho, no jornaleco num canto do café da manhã. Meu amigo verdamarelo ficou mortificado: “De rabo de olho, maluco?! Copa no Brasil, final no Maracanã, Brasil e Uruguai... 1950? Brasil perdeu de dois a um, mó decepção. Povo tava comentando aí, teve tiozinho que mudou até o caminho pro trabalho pra não passar na frente do estádio. Hoje vai ser a revanche! Tem que ser!”.
R: [Risos] Ah... garanto que isso fez suas anteninhas de vinil se agitarem! [Risos]
F: Conhece-me bem, amigo Ricoeur! A essas alturas eu já tinha até esquecido a caipirinha derretendo. Estou com uma queimadura péssima nas pontas dos dedos. Mas enfim, toda minha atenção era agora do meu curioso interlocutor. Duas Copas do Mundo no Brasil? Duas finais? Brasil e Uruguai? Não que apenas dois eventos possam ser lá chamados seriais, mas ainda assim a repetição era boa demais pra eu não me interessar. Todas aquelas variáveis comparáveis! Não resisti. Atravessei a cidade, passei um pouco da tinta do rapaz nas bochechas e deixei praticamente as calças num cambista aí fora – ó, vou te falar que conseguir ingresso pra final da Copa no dia da final da Copa não é mole não -, mas cá estou.
R: [Risos] Bem, que bom que é só tinta. Estava a ponto de perguntar quem tinha te acotovelado na fila.
F: Mas e você, Ricouer? O que te traz aqui ao Brasil, em pleno Maracanã, na final da Copa? A França nem jogando está. Já sei! Ficou, como eu, intrigado com todas as análises comparativas possíveis. Finalmente meus trabalhos te convenceram da importância fundamental e única da série, não foi? Sabia que ficar lhe enviando todos eles não tinha sido desperdício de selo afinal.
R: Lamento desapontá-lo, companheiro Furet! Meu ingresso está comprado há meses! Não fazia a menor ideia de quem jogaria a partida final quando passei aqueles quarenta preciosos minutos atualizando a página do bendito site e batendo boca sozinho com o servidor do pay-pal. Conseguir ingresso pra final da Copa não é mole em dia nenhum.
F: Bem, mas se não foi essa espantosa recorrência que te motivou, o que foi então? Quarenta minutos de pay-pal e uma viagem ao Brasil pra assistir uma hora e meia de jogo me parece terrivelmente trabalhoso.
R: É muito simples na verdade: adoro futebol! Futebol é pura narrativa, meu caro, Furet! Pura!
F: Não acho. Narrativa? Não, não. O que temos aqui é um campo fértil de lindas variáveis esperando para serem comparadas tão logo eu as produza. Posse de bola, finalizações, passes corretos, cruzamentos, escanteios, saldo de gols, ainda não sei que são impedimentos, mas imagino que não devem ser difíceis de mensurar! Não tenho ainda os dados concretos, mas quando os tiver será possível traçar todo o percurso de enfrentamento entre as duas equipes. E pretendo dar uma atenção especial às duas finais. Ah, em condições tão semelhantes! Diga-me, Ricoeur, como isso não te empolga? Estou até arrepiado, e o apito nem soou!
R: [Risos] Ah, Furet! Se quiser comparar um jogo ao outro, fique a vontade, faça-o como achar melhor. Sei muito bem que você diria ser loucura-da-viagem-na-maionese tentar relacionar o resultado de uma partida à anterior. Suponho que vá ter calafrios quando ler no jornal de amanhã que o placar do jogo de hoje deve tudo a 1950.
F: Nem brinque! É essa narrativa aí. Sempre tentando ordenar o caos dos acontecimentos humanos, elencando-os numa relação de causalidade. Quando vão aprender? Pelo menos os historiadores a estão abandonando pelos problemas. Há luz no fim desse túnel narrado.
R: Já disse, amigo: compare os jogos como quiser. Você me ouviu criticar suas queridas variáveis? Não! Longe de mim. Mas uma partida de futebol é narrativa, e nem com todos os seus esforços, ou as suas calças, você vai me fazer mudar de ideia sobre isso. É lindo, Furet! Lindo! Mimese um, dois e - pasme! - três, acontecendo bem diante do meu nariz. Em carne, osso, grama e suor! Eu é que estou arrepiado!
F: [Risos] Pois eu é que não mudei de ideia com esse seu “lindo-lindo-mimese-1,2,3-ui-pasmei!”.
R: [Risos] Tenha paciência, homem! Vou conseguir explicar melhor assim que os jogado… Isso! Estão saindo do vestiário. Pois muito bem! Assista, meu caro, à prefiguração! Ah, como você não vê? Olhe, olhe: camisas verde-amarelas, camisas azuis e brancas. Cada um desses homens prontos pra agir, com um motivo! Um objetivo claro que norteará cada chute que derem na bola, cada direção que correrem. Não são neutros: carregam seus valores e aqueles que a mídia e a torcida atribuíram a eles. Onde eles estão? Ali, ó, no gramado. No Rio de Janeiro, no Maracanã, numa Copa do Mundo, numa final! Os dois tempos nos quais a partida se dará já estão pré-determinados. Toda a estrutura da narrativa está armada!
F: Certo, mas só porque VOCÊ a identifica. Pra mim isso tudo aí não passa de wishfull thinking. Acho que você devia repensar suas variáveis, pegar um desses seus bloquinhos, e me ajudar a anotar quantos dos tais impedimentos acontecem na partida. Isso sim seria muito mais útil.
R: Calma, meu amigo, calma. Espere só, espere só… Já continuo, deixe só o jogo começar. Vou tentar comprar um daqueles hot-dogs. Quer dizer, se não forem absurdos. A moça do hotel disse que se me cobrarem mais que cinco reais é pra eu gritar que é um assalto: “se não vier com purê, então…”. Mas, né, FIFA, barato não deve ser. Quer rachar um?
F: Não, obrigado. Gastei meu último centavo no ingresso.
[...]
F: Já de volta?! Achei que ia demorar séculos por casa da fila e tal.
R: Desisti no meio do caminho. Mal consegui sair da arquibancada, temo que não ia conseguir voltar a tempo. A casa está realmente cheia! Vamos fazer alguma coisa depois daqui, talvez tomar uma cervejinha e comer uma porção daqueles passarinhos.
F: [Risos] Frango a passarinho, Ricoeur! [Risos]
R: Isso! Desses mesmo! Comi uma esses dias, que coisa genial! Mas eles se posicionaram, Furet, veja! O juiz vai apitar! Preparado para a mimese doooois? Hein? Heeein?!
F: [Risos] Ai, Ricoeur. Estou intrigado, admito. Mas não vá atrapalhar minhas anotações, hein? Isso é coisa importante.
R: Certo, certo. Dá-me um papel aí, vá. Ajudo-te com os impedimentos. Eles não acontecem com tanta frequência assim, consigo fazer as duas coisas.
F: Ótimo! E aí, Ricoeur? E aí? Agora? Cadê a mimese dois? Cadê? Eles estão correndo lá, olhe. Chutando a bola e tudo. Vamos, homem, exemplifique!
R: Ahn? Chutando…? Ah! Desculpe, amigo, estou concentrado aqui… Vai, vai, vai, VAI! É goo… Uuuuuu. PÔ, JUIZ! TAVA IMPEDIDO COISA NENHUMA!
F: ISSO! Aí, ó: impedimento! Marque aí, façavor!
R: Recuso-me! Não estava impedido nem aqui, nem em lugar nenhum. Juiz ladrão!
F: Ah, Ricoeur, economize-me e anote de uma vez, vá.
R: É um crime isso. Hunf. Mas olha lá, olha lá… vaaaaai, éééé GOOOOL! GOOOOOOOOL!
F: [Risos] Meu Deus, Ricoeur, controle-se! Seus óculos vão sair voando com você pulando desse jeito.
R: Mas é justamente essa a oportunidade que eu estava esperando, homem! Mimese dois, vamos lá! Quem fez o gol?
F: O tal do Neymar, oras. Não viu? Talvez seus óculos já não estejam tão bons…
R: Exato! O Neymar! O objetivo dele é ganhar o jogo. Por isso ele agiu, chutando a bola de forma que sua trajetória se desse em direção ao gol. O goleiro tem o mesmo objetivo que ele, então também agiu, deslocando-se na tentativa de impedir que a bola entrasse. O resultado das ações de ambos foi o golaço! Ou seja: a intenção de Neymar se cumpriu, a do goleiro não.
F: Certo. E…?
R: Ah, mas pense! Por que Neymar fez o gol?
F: Porque ele chutou a bola nessa direção, e o goleiro falhou em impedi-la de cruzar a linha.
R: Muito bem! E por que ele chutou?
F: Bem, porque ele quer ganhar o jogo, obviamente.
R: Sim, mas pra que ele possa ter chutado, a bola tinha que ter encontrado seu caminho até os pés dele naquele exato pedacinho do campo, naquele exato momento. Como ela fez isso?
F: Aquele outro jogador fez um cruzamento dos bons ali pela esquerda.
R: Isso! Então Neymar marcou o gol porque o Daniel Alves fez um cruzamento que colocou a bola em uma posição favorável à finalização. Mas pra que ele tenha feito isso, ele próprio precisava ter tido a bola aos seus pés, no lugar e no momento em que ela os encontrou. Entende onde quero chegar?
F: Entendo é que com essa lenga-lenga toda aí você vai acabar me levando lá de volta ao apito inicial.
R: Precisamente, meu amigo, precisamente! Cada toque, chute, corrida, falta, todos acontecimentos facilmente ordenados numa relação de causa, ganhando sentido conforme são incorporados à narrativa do jogo.
F: Não tinha pensando nisso. Mas você concorda que só facilmente se ordenam dessa forma porque você assim o fez?
R: Concordo, Furet. E não digo que não haja apenas concordância entre eles. Mas como compreendê-los de outra maneira, nessa temporalidade tão específica? Mesmo você, quando falar não da comparação entre os jogos, mas do jogo de hoje, vai fazer o mesmo. Claro que do seu jeito, começando por lá ou cá, mais ou menos romântico, mas sem dúvida nenhuma narrativo.
F: Pois muito bem, Ricoeur. E a mimese três?
R: Essa é a melhor parte, meu caro! A mimese três está a acontecer esse tempo todo! É a experiência da narrativa. Você, eu, quantos forem os torcedores aqui no estádio, ou assistindo ao jogo pela tevê, tantas serão as produções de seu significado! Dentro das possibilidades que ele oferecer, claro. Meus comentários para você? Mimese três. Minha sincera opinião de que o impedimento foi mal marcado e isso foi um roubo deslavado daquele juiz de araque? Também. O que aquele moço com chapéu de bobo da corte pensou quando viu o gol, o que você está processando agorinha mesmo enquanto anota suas variáveis e vê o Hulk cobrando a lateral.
F: Acredito que vi onde você quis chegar! Não posso dizer que esteja totalmente convencido, mas acho que isso é um papo que a gente pode bater entre a cerveja e o franguinho! Eu já me atrapalhei todo com meus quadradinhos contando essas faltas, e tenho a impressão de uns dois outros impedimentos já aconteceram, embora não tenha certeza.
R: [Risos] Combinado, Furet! Estou vendo que o bar vai ficar pequeno pra discussão hoje! [Risos]


Ludmila Dias de Paula Lemos
nºUSP 6838707 - Noturno

4 comentários:

  1. Esta foi a postagem mais gostosa de ler, além de bem escrita ainda demonstra um bom conhecimento dos autores e do próprio futebol, adorei.

    Kátia Gomes da Costa - 7198331 - Noturno

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  2. Muitíssimo bem escrito, demonstra o contato profundo da autora com váriados gêneros literários. Além de traçar um plano de fundo completo para o diálogo, vai fundo nos conceitos trabalhados por Furet e Ricoeur. A leitura é uma delícia! Vai que vai.

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  3. Texto muito bom, encaixou os conceitos com a descrição da partida, de forma fluída.
    Gostei especialmente da parte da mímese 3, a questão da pluralidade, da recepção da arte e da explicação de Ricoeur de que "futebol é narrativa". O texto ficou descontraído!

    obs- "Taís-história" estagiária

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