domingo, 6 de outubro de 2013

A problemática (da) narrativa

O relógio de campo apontava a chegada dos 73 minutos e 34 segundos da grande final da Copa de 2014, e o estômago de François Furet roncava. Não lhe restou outra saída, senão enfrentar uma longa fila para comprar um cachorro-quente padrão FIFA – foram oito reais desembolsados na aquisição de uma simples salsicha cozida em meio a um pão, mais simples ainda. Sacrifício que não fez, é claro, sem amaldiçoar mentalmente o vendedor, os idealizadores da Copa e todos os seus descendentes. 
- Esse cachorro-quente me faz entender todas aquelas sublevações dos populares. São quase 3 euros por... Isso!
- Pare com esse drama cristão, François. A atmosfera de instabilidade aqui do Rio de Janeiro abaixou o preço dos ingressos, e é só por isso que estamos aqui... Agradeça aos revolucionários brasileiros que estão lá fora, lutando por um cachorro-quente com mais sustância.
- Pffff! - engasgou Furet, em meio a um riso irônico – Não me venha falar de “revolucionários”, estou cansado dessa máscara romantizada que insistem em colocar sobre os eventos históricos. A Revolução morreu! Se esses saudosistas ainda teimam em manter a posição de rebeldia, isso se deve unicamente a tentativas piegas de reciclar os ideais da Revolução Francesa. E, aliás!, no ano anterior os levantes eram muito maiores do que os atuais. O que os revolucionários de alguns meses atrás estão fazendo? Eu te digo: o automóvel...
- “O automóvel, o frigorífico, e a televisão mataram a Revolução”. - disse Ricoeur, interrompendo a fala do historiador. - E os insurgentes de meses atrás, rendidos pela comodidade e pelo panis et circenses, estão assistindo aos jogos, por isso estão ocupados demais para demonstrar sua insatisfação nas ruas. Eu já li esse seu livro, você me mandou pelo menos umas duas cópias dele. Aliás, deve ter mandado para toda a França... Ou, pelo menos, para todos os franceses marxistas.
- Para o Sartre eu tinha que mandar. Mas não por provocação... Sabe que nunca faria isso! Ele é uma boa pessoa; aliás, muitos dos marxistas são, por isso tento apelar de maneira didática para ajudá-los a sair dessa lama de ingenuidade. Já estava na hora de aceitarem que a base que engendra o seu “comunismo” é totalmente totalitária: não foi à toa que as ideologias morreram. Mas essas desilusões políticas dos intelectuais trouxeram bons frutos para a historiografia, que não mais se reduzia à superficialidade da narrativa; essas decepções fizeram com que emergisse a necessidade de problematizar... Questionar, para assim entender por que o rumo da história os havia desapontado.
- Se é para problematizar, quero entender por que estamos assistindo ao jogo de dois times latinoamericanos e ainda não contemplamos nenhum gol. - reclamou Ricoeur, no momento em que Alexandre Pato cobra (mediocremente) uma falta – Mas, se está com vontade de entrar nos méritos dessa discussão DE NOVO, me diga: como você teria a noção da passagem do tempo se não houvesse uma articulação através da história narrativa? É só assim que o tempo se organiciza... Se torna humano. Pense nos subversivos de 2013 que, segundo você, estão agora assistindo a esse jogo, cuja narrativa deve estar sendo articulada por um renomado narrador de alguma renomada emissora.
E a tessitura da intriga... É, acho que aí o encarregado de fazer o roteiro desse jogo monótono está pecando um pouco; mas o que eu quero dizer é que, se não fosse essa estrutura narrativa, a atuação dos jogadores poderia se tornar vazia, perante a alguns espectadores. A narração de um jogo - seja ela romantizada, ou exagerada - é a maior responsável por tornar acontecimentos banais, como a cobrança de um pênalti, em uma história...

O ar de morosidade do jogo foi subitamente substituído pelos burburinhos: um chute despretensioso - porém, certeiro - ao gol era comemorado pela empolgada torcida brasileira, e foi sucedido por uma discussão entre o uruguaio Edinson Cavani e o brasileiro Emerson Sheik.

- O que aconteceu? Alguém entendeu o motivo da briga? O brasileiro trombou no do arquinho, antes do gol? - disse Furet, cutucando seu colega; sua voz tinha um tom de entusiasmo talvez nunca utilizado antes.

O ar ficou tenso, os jogadores discutiam de maneira generalizada, pedindo a anulação do gol – o que o juiz não atendeu, pois havia considerado a jogada legal: “um choque entre dois jogadores é uma coisa normal, por que deveria ter dado falta?!” (aparentemente, o juiz achava que um chute de peito de pé na canela de um desconhecido era uma coisa comum – o que não seria estranho, se considerarmos que a personagem em questão é paga para correr atrás de pessoas que correm atrás de uma bola). A flexibilidade das opiniões do juiz pareciam irritar ainda mais aos torcedores uruguaios: dois jogadores de seu time haviam sido expulsos logo no início do jogo, por terem desferido entradas muito bruscas em um brasileiro que havia acabado de se recuperar de uma séria contusão (também conhecido como Neymar). Os protagonistas da briga se encaravam irados – ou melhor, Cavani estava irado; o olhar de Sheik se mostrava ao mesmo tempo provocativo, intimidador e irônico. Passaram assim por uns bons segundos, até o brasileiro deflagrar todo esse ar de provocação através de uma “dura invectiva”: um beijo estalado nos lábios do adversário.

A comoção no estádio foi desmedida: os brasileiros, que anteriormente comemoravam e exaltavam ao autor do gol, se esqueceram de tal feito no momento em que promoveu (mais) essa brincadeira de mau gosto - “O que os gringos vão pensar da gente?!”, diziam os homófobos (também conhecidos como homens de bem) menos fervorosos. As críticas dos uruguaios a uma possível improbidade do juiz foram abafadas pelos demais torcedores, que vociferavam contra Sheik. A reação de Cavani, entretanto, foi inaudita; apesar de desconcertado, tudo o que conseguiu fazer foi... Rir.

- Viu só, Ricoeur? - disse Furet.
- Vi! É impressão minha, ou o jogo vai acabar com um banho de sangue e dez minutos de antecedência?
- Pouco me importa o banho de sangue. A questão é: posso até prever a repercussão que esse evento terá. Possivelmente, uma série de artigos relativos a esse acontecimento serão redigidos, e nesses serão observáveis as mais variadas visões: alguns verão como uma afronta ao respeitável futebol brasileiro; outros como uma revolucionária crítica à homofobia... Mas ninguém que tenha uma abordagem meramente narrativa, que se reduza a abordar o factual, o evenemencial, conseguirá remeter ao cerne da questão... O qual é explicitado até mesmo pela exacerbada quantidade de pessoas que sentem necessidade de escrever sobre, ou até mesmo de explicar a esses eventos. A supervalorização deles prova o quão longe estão de ser banais e, consequentemente, mostra o quão forte continua a imposição de padrões instituídos há séculos. Uma abordagem narrativa pode se tornar muito reducionista e até enganadora, apesar da verossimilhança que sua formulação possa garantir.
- É... - concordou Ricoeur - Você está certo, talvez a narrativa não seja suficiente, por si só...

Furet estava satisfeito: ao seu ver, um debate teórico vigente há décadas havia se encerrado aí, com sua vitória. Enquanto isso, os torcedores brasileiros ainda não haviam se decidido se deviam reivindicar a expulsão do “meliante” pela falta cometida antes do gol, ou esquecer os infortúnios e comemorar o hexacampeonato.

Camilie Cardoso - nº 8031191

Um comentário:

  1. Texto muito bom, mas como assim Ricoeur perdeu o debate para Furet?! Ficcionalmente o desfecho do texto surpreende, tendo em vista os demais posts, porém poderia ter dado mais voz a Ricoeur e seus argumentos. Ainda assim, ficou clara a contraposição entre os dois sobre o tema da narrativa, mas teriam outros pontos interessantes a serem abordados! Mesmo a questão da história serial não foi muito explorada.

    ResponderExcluir