O
relógio de campo apontava a chegada dos 73 minutos e 34 segundos da
grande final da Copa de 2014, e o estômago de François Furet
roncava. Não lhe restou outra saída, senão enfrentar uma longa
fila para comprar um cachorro-quente padrão FIFA – foram oito
reais desembolsados na aquisição de uma simples salsicha cozida em
meio a um pão, mais simples ainda. Sacrifício que não fez, é
claro, sem amaldiçoar mentalmente o vendedor, os idealizadores da
Copa e todos os seus descendentes.
- Esse
cachorro-quente me faz entender todas aquelas sublevações dos
populares. São quase 3 euros por... Isso!
- Pare
com esse drama cristão, François. A atmosfera de instabilidade
aqui do Rio de Janeiro abaixou o preço dos ingressos, e é só por
isso que estamos aqui... Agradeça aos revolucionários brasileiros
que estão lá fora, lutando por um cachorro-quente com mais
sustância.
- Pffff!
- engasgou Furet, em meio a um riso irônico – Não me venha
falar de “revolucionários”, estou cansado dessa máscara
romantizada que insistem em colocar sobre os eventos históricos. A
Revolução morreu! Se esses saudosistas ainda teimam em manter a
posição de rebeldia, isso se deve unicamente a tentativas piegas
de reciclar os ideais da Revolução Francesa. E, aliás!, no ano
anterior os levantes eram muito maiores do que os atuais. O que os
revolucionários de alguns meses atrás estão fazendo? Eu te digo:
o automóvel...
- “O
automóvel, o frigorífico, e a televisão mataram a Revolução”.
- disse Ricoeur, interrompendo a fala do historiador. - E os
insurgentes de meses atrás, rendidos pela comodidade e pelo panis
et circenses, estão assistindo aos jogos, por isso estão
ocupados demais para demonstrar sua insatisfação nas ruas. Eu já
li esse seu livro, você me mandou pelo menos umas duas cópias
dele. Aliás, deve ter mandado para toda a França... Ou, pelo
menos, para todos os franceses marxistas.
- Para
o Sartre eu tinha que mandar. Mas não por provocação... Sabe que
nunca faria isso! Ele é uma boa pessoa; aliás, muitos dos
marxistas são, por isso tento apelar de maneira didática para
ajudá-los a sair dessa lama de ingenuidade. Já estava na hora de
aceitarem que a base que engendra o seu “comunismo” é
totalmente totalitária: não foi à toa que as ideologias
morreram. Mas essas desilusões políticas dos intelectuais
trouxeram bons frutos para a historiografia, que não mais se
reduzia à superficialidade da narrativa; essas decepções
fizeram com que emergisse a necessidade de problematizar...
Questionar, para assim entender por que o rumo da história os
havia desapontado.
- Se
é para problematizar, quero entender por que estamos assistindo ao
jogo de dois times latinoamericanos e ainda não contemplamos
nenhum gol. - reclamou Ricoeur, no momento em que Alexandre Pato
cobra (mediocremente) uma falta – Mas, se está com vontade de
entrar nos méritos dessa discussão DE NOVO, me diga: como você
teria a noção da passagem do tempo se não houvesse uma
articulação através da história narrativa? É só assim que o
tempo se organiciza... Se torna humano. Pense nos subversivos de
2013 que, segundo você, estão agora assistindo a esse jogo, cuja
narrativa deve estar sendo articulada por um renomado narrador de
alguma renomada emissora.
E a tessitura da intriga... É, acho que aí o encarregado de fazer
o roteiro desse jogo monótono está pecando um pouco; mas o que eu
quero dizer é que, se não fosse essa estrutura narrativa, a
atuação dos jogadores poderia se tornar vazia, perante a
alguns espectadores. A narração de um jogo - seja ela
romantizada, ou exagerada - é a maior responsável por tornar
acontecimentos banais, como a cobrança de um pênalti, em uma
história...
O ar de
morosidade do jogo foi subitamente substituído pelos burburinhos:
um chute despretensioso - porém, certeiro - ao gol era comemorado
pela empolgada torcida brasileira, e foi sucedido por uma discussão
entre o uruguaio Edinson Cavani e o brasileiro Emerson Sheik.
- O
que aconteceu? Alguém entendeu o motivo da briga? O brasileiro
trombou no do arquinho, antes do gol? - disse Furet, cutucando seu
colega; sua voz tinha um tom de entusiasmo talvez nunca utilizado
antes.
O ar
ficou tenso, os jogadores discutiam de maneira generalizada,
pedindo a anulação do gol – o que o juiz não atendeu, pois
havia considerado a jogada legal: “um choque entre dois jogadores
é uma coisa normal, por que deveria ter dado falta?!”
(aparentemente, o juiz achava que um chute de peito de pé na
canela de um desconhecido era uma coisa comum – o que não seria
estranho, se considerarmos que a personagem em questão é paga
para correr atrás de pessoas que correm atrás de uma bola). A
flexibilidade das opiniões do juiz pareciam irritar ainda mais aos
torcedores uruguaios: dois jogadores de seu time haviam sido
expulsos logo no início do jogo, por terem desferido entradas
muito bruscas em um brasileiro que havia acabado de se recuperar de
uma séria contusão (também conhecido como Neymar). Os
protagonistas da briga se encaravam irados – ou melhor, Cavani
estava irado; o olhar de Sheik se mostrava ao mesmo tempo
provocativo, intimidador e irônico. Passaram assim por uns bons
segundos, até o brasileiro deflagrar todo esse ar de provocação
através de uma “dura invectiva”: um beijo estalado nos lábios
do adversário.
A
comoção no estádio foi desmedida: os brasileiros, que
anteriormente comemoravam e exaltavam ao autor do gol, se
esqueceram de tal feito no momento em que promoveu (mais) essa
brincadeira de mau gosto - “O que os gringos vão pensar da
gente?!”, diziam os homófobos (também conhecidos como homens
de bem) menos fervorosos. As críticas dos uruguaios a uma
possível improbidade do juiz foram abafadas pelos demais
torcedores, que vociferavam contra Sheik. A reação de Cavani,
entretanto, foi inaudita; apesar de desconcertado, tudo o que
conseguiu fazer foi... Rir.
- Viu
só, Ricoeur? - disse Furet.
- Vi!
É impressão minha, ou o jogo vai acabar com um banho de sangue e
dez minutos de antecedência?
- Pouco
me importa o banho de sangue. A questão é: posso até prever a
repercussão que esse evento terá. Possivelmente, uma série de
artigos relativos a esse acontecimento serão redigidos, e nesses
serão observáveis as mais variadas visões: alguns verão como
uma afronta ao respeitável futebol brasileiro; outros como uma
revolucionária crítica à homofobia... Mas ninguém que tenha uma
abordagem meramente narrativa, que se reduza a abordar o factual, o
evenemencial, conseguirá remeter ao cerne da questão... O qual é
explicitado até mesmo pela exacerbada quantidade de pessoas que
sentem necessidade de escrever sobre, ou até mesmo de explicar a
esses eventos. A supervalorização deles prova o quão longe estão
de ser banais e, consequentemente, mostra o quão forte continua a
imposição de padrões instituídos há séculos. Uma abordagem
narrativa pode se tornar muito reducionista e até enganadora,
apesar da verossimilhança que sua formulação possa garantir.
- É... - concordou Ricoeur - Você está certo, talvez a narrativa não seja suficiente, por si
só...
Furet
estava satisfeito: ao seu ver, um debate teórico vigente há
décadas havia se encerrado aí, com sua vitória. Enquanto isso,
os torcedores brasileiros ainda não haviam se decidido se deviam
reivindicar a expulsão do “meliante” pela falta cometida antes
do gol, ou esquecer os infortúnios e comemorar o hexacampeonato.
Camilie Cardoso - nº 8031191
Texto muito bom, mas como assim Ricoeur perdeu o debate para Furet?! Ficcionalmente o desfecho do texto surpreende, tendo em vista os demais posts, porém poderia ter dado mais voz a Ricoeur e seus argumentos. Ainda assim, ficou clara a contraposição entre os dois sobre o tema da narrativa, mas teriam outros pontos interessantes a serem abordados! Mesmo a questão da história serial não foi muito explorada.
ResponderExcluir