Como era de se esperar, François
Furet e Paul Ricoeur estavam sentados lado a lado no Maracanã, assistindo a
final da Copa do Mundo de 2014, Brasil e Uruguai disputando o título. Furet
estava lá por seu gosto por futebol. Ricoeur não, nada era tão simples para
Paul Ricoeur.
Acontece que os desamores da vida
acadêmica acabaram por levar Ricoeur à loucura, fazendo com que se voltasse
cada vez mais à existência e à sua espiritualidade aporética. No início não era
tão ruim, mas com o passar do tempo começou a ouvir vozes. As palavras de seus
mestres ecoavam em sua cabeça, seus pensamentos tornaram-se circulares – não
círculos viciosos, sem vida, mas círculos crescentes que, como uma bola de neve
transformada em avalanche, tinham tremendo potencial destrutivo. Um dia
Heidegger apareceu em um sonho e disse que o que importava mesmo era a
intensidade das coisas. O renomado intelectual não se esqueceria daquele sonho
– haveria de viver a vida ao máximo, ampliando intensamente sua consciência
temporal, vivendo na memória as graças e desgraças do que passou e esperando,
angustiado, as possibilidades de vida e morte que o futuro lhe reservava.
Ricoeur não vivia apenas o presente, a partir deste vivia também passado e
futuro. Seu vício em vida o levou a buscar as mais intensas experiências e nada
poderia ser mais intenso que o final da Copa do Mundo no Brasil, por isso
estava lá.
R- Ó Deus, me diga! O tempo passa em
minha alma ou será minha alma que, atenta, conhece a existência do tempo? Por
que? Por que o primeiro tempo não acaba nunca?
Furet
não reconhecera Ricoeur, cuja loucura acabou por transformar completamente a
aparência: o rosto velho tatuado com as palavras “lealdade, humildade,
procedimento”, a barba longa pintada de verde e amarelo, as robes de monge...
Achou melhor ignorar o maluco.
Ricoeur,
contudo, sabia quem era o homem ao seu lado.
R-
Sabe porquê estou aqui, François?
F- Perdão, eu te conheço? Como sabe
meu no..
R- Estou aqui para viver o ápice da
tragédia! O Uruguai já derrotara o Brasil em uma final de copa neste mesmo
estádio. Olhe para o rosto das pessoas, a memória viva desta ferida as persegue
hoje. Há infortúnio mais desmerecido que este? Que a repetição dessa bela história?
Que estas pobres e nobres pessoas cujo único sentido na vida é o futebol tenham
que amargar a derrota mais uma vez? Só seria pior se fosse pela Argentina.
O juiz apitara o fim do primeiro
tempo.
F- É, talvez você tenha razão. Seria
muito triste mesmo. Ainda bem que está zero a zero, disse sorrindo. De toda
forma, quem é você e como sabe meu nome?
R- Eu sou Paul Ricoeur e você é
François Furet, o assassino da narrativa!
F- Ricoeur?! Minha nossa, o que
aconteceu contigo? E do que você me chamou?
R- Ah, Furet! Continua a negar a
importância da narrativa? A se recusar a enxergar como o tempo e a vida dela
emergem?!
F- Oi?
R- “O tempo torna-se tempo humano na
medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é
significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal”.
F- Hã?
R- Bonito, né? É uma das idéias
centrais da minha obra e está num de meus livros. Não lembro bem da versão
original mas sei que o nome em português é Tempo e Narrativa e que as frases que
citei estão na página 15 na edição de 1994 da Papirus Editora, é preciso manter
a erudição, afinal. Você deveria ler, pode aprender alguma coisa. Contudo, não
vou explicar tudo agora, teria que falar do Santo Agostinho, misturá-lo com
Aristóteles, Heidegger e sabe-se lá quem mais. Vou é te convencer que não
precisa ter tanto medo da narrativa porque, no fundo, é o que você faz
profissionalmente.
Ricoeur se pôs a falar, embora
parecesse claramente perturbado, suas palavras eram bastante lúcidas. Não é que
a avalanche de Ricoeur fazia sentido?
R- Te explico tudo, seu assassino
que recusa ver a identidade estrutural entre sua preciosa historiografia e a literatura.
Toda ação humana ocorre no tempo, certo?
Pois bem, a narratividade expressa a
experiência humana no tempo. A narrativa que você tanto critica nada mais é do que
um tipo de mimese, uma representação da ação humana realizada por meio da
tessitura da intriga, pode perguntar pro Aristóteles, embora não possa garantir
que ele colocaria bem assim.. Enfim, é o encadeamento lógico e verossímil dos
fatos. Não é isso que vocês historiadores fazem? Pois é, toda história é
narrativa e se você discorda, azar!
F- Cara, vai com calma! Você vem e
me diz que toda história é narrativa, tudo bem! Eu nunca disse que a narrativa
não tem importância ou que a história não tem nenhum caráter narrativo.
Inclusive está escrito lá na versão portuguesa do meu livro A Oficina da
História: “a história oscilará provavelmente sempre entre a arte da
narrativa, a inteligência do conceito e o rigor das provas”. Viu? Também tenho
boa memória e, mais importante, eu sei que ela está lá... Só não acho que a
história deve ser pura narrativa, tem que ser pensada de outra forma, se não
fica que nem a história daqueles caras do século XIX, entendeu? Daqueles que
pensavam que eventos extraordinários como o de hoje são os únicos autênticos
fatos históricos. Assassino da narrativa... cê tá louco! O que eu chamo de
história narrativa não é bem isso aí que você fica falando não, é aquela
história pouco conceitual mais baseada em momentos que objetos, cujos
acontecimentos são somente fatos extraordinários, únicos, cujos procedimentos
metodológicos não são explicitados e cuja organização lógica só pode se dar de
forma teológica. A história pode ser mais que isso, entendeu? A história
quantitativa, por exemplo, é bastante promissora..
- GOOOOOOOOOOL!!!
RF- ?!?
Escrito assim até parece que foi uma
conversa breve, mas não foi não. Quando Furet parou de falar o segundo tempo já
estava bem encaminhado e o Brasil tinha acabado de fazer um gol.
F- Merde! Não acredito que perdemos
o gol!
R- Estou vendo que o tempo está
passando e que logo o Brasil ganhará a Copa. Isso não pode acontecer. Peço
perdão por abandoná-lo agora, pobre incrédulo, mas devo tomar as rédeas dessa
história. Às vezes devemos tomar parte nas ações para que outros as narrem.
Fico particularmente feliz que as minhas sejam narradas pelo Galvão – que
narrador! – nas palavras dele a ação ganha verdadeira vida! Enfim, vim aqui por
um único motivo, François, viver a intensidade da maior tragédia vista pelo
homem, uma tragédia que remonta ao passado, quero viver este passado e presente
se transformarem em um futuro de dor!
Ricoeur puxou então um revolver de
sua mochila. Furet, pasmo, não conseguiu pronunciar uma palavra.
R- Este belo acontecimento que
estamos prestes a vivenciar me faz pensar mais uma vez em minha obra. Como você
deveria saber, François, o processo mimético da tessitura da intriga só tem
sentido como a mediação entre a pré-figuração, o campo prático, e a refiguração.
A inteligibilidade da narrativa só pode se dar nessa mediação. É somente com a
leitura da narrativa por aquele que a recebe que o processo se completa. Tome
meu rádio. Fique atento às belas palavras de Galvão Bueno e faça a leitura correta,
assim saberei que minhas ações não serão em vão.
Com essas palavras o velho barbudo
com roupas de monge se afastou. Quando Furet recuperou a voz já era tarde
demais.
Lucas Mello Neiva, número usp 4335686
Lucas Mello Neiva, número usp 4335686