segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Ricouer e Furet na final da Copa de 2014

Era domingo. Final de copa do mundo, 2014, Brasil. Para os poucos torcedores de idade mais avançada, o jogo trazia muitas memórias: os times que disputavam o último jogo do campeonato eram Brasil, que jogava em casa, e Uruguai, embate já vivido em uma final de copa de mundo na década de 50, no Maracanã.

Dois senhores, que – surpreendentemente – mantinham-se ativos apesar da idade muitíssimo avançada, sentavam-se respectivamente na cadeira B-237 e B-238 da arquibancada azul. Um ao lado do outro, aguardavam o início da partida. O cansaço, manifesto nas respirações lentas e desritmadas entre si, dos dois velhos, mantia um silêncio repletos de burburinhos vindos da arquibancada, intercalado por gritos de “Vai, Brasil!”. Um tipo de silêncio que só se ouve quando se guardam demais as palavras: o entorno se dilui no que se retém dentro de si.

François Furet chegara mais cedo e guardara o assento B-238 com sua boina, mesmo sabendo que os ingressos eram numerados. Quando Ricouer chegou, deram-se um tímido abraço seguido de uma saudação curta. Furet foi o primeiro a romper o silêncio estabelecido após o breve descanso de seu velho amigo. Perguntou-lhe se estava bem, como tinha sido a viagem e outras perguntas que fazem pessoas que não se veem a algum tempo. Continuaram a conversar durante o jogo, num ritmo mais desacelerado, quando este começou.

F.: Incrível, não, meu caro? Brasil e Uruguai se enfrentando em uma final de copa do mundo. Forlan, Lugano, Neymar, Lucas... Incrível. Mais incrível é que mais da metade dos torcedores, das pessoas que encontrei na rua, insistem em tratar o jogo de hoje como continuidade do jogo de 1950. Como se fosse uma repetição do que aconteceu naquela década.

(Neymar avança sozinho para o campo adversário; chuta a gol, mas a bola bate na trave)

R.: Mas negar a relevância da final de 50 para este jogo, com estas mesmas seleções, neste mesmo estádio, é uma bobagem, meu amigo. O som – ou o silêncio de mais de 100 mil pessoas – do jogo de 1950 está reverberando até agora: ouço nas palavras das pessoas que encontro na rua, um desejo que provém do resultado do jogo anterior. É preciso pensar no passado para enxergar o que está interligado com este no presente.

F.: O Júlio César não é o Barbosa. E o Forlan não é o Ghiggia. E lembro bem que em 50 não tinha gente do lado de fora gritando contra a realização dos jogos, protestando contra a própria copa. Em 50, o Brasil era outro. E o Uruguai também. Não faz sentido nenhum aproximar esses dois momentos sendo que eles não tem uma ligação única entre si. Entre esses dois jogos, aconteceram mais de 40 jogos entre as duas seleções. Se você pretende ligar esses acontecimentos, deveria elencar todos os jogos e o contexto em que eles aconteceram e problematizar tais informações, a fim de compreender mudanças e continuidades entre esse período. Ignorá-los é dar passos largos e tortos num caminho sem sentido.

R.: É claro que o Júlio César não é o Barbosa. Mas você tem que admitir, Furet: existe uma memória do jogo de 50 que determina o modo que os jogadores estão jogando. Não que o Neymar seja dos quietinhos, mas veja ali. Acabou de dar um carrinho no Lugano. É claro. Não estou ignorando que estamos em outro contexto, mas a importância da vitória para o Brasil, neste jogo, se faz muito maior devido a final perdida na primeira e última copa realizada neste país.

F.: Ricouer, meu caro. Não há relação direta entre os dois jogos. Independente disso, é claro que esse jogo é um acontecimento histórico, pois é singular e único, depois desses 90 minutos, nunca mais se repetirá. Sem falar que não é um dos jogos triviais, um amistoso. É uma final de copa do mundo. Os jogos de copa do mundo, arisco dizer, muitas vezes são usados para incentivar o ufanismo ou conter descontentamentos políticos. Mas mais uma vez lhe digo: não é necessário vincular o jogo de 64 anos atrás ao de agora para que este tenha validade. Ambos, por si só tem valor e não há necessidade dessa aproximação sem sentido.

R.: Isso, meu caro Furet, não cabe só a nós decidir. Um acontecimento também torna-se um fato histórico de acordo com as reverberações posteriores do mesmo... Eu ainda sigo acreditando que este jogo e o sentimento coletivo em relação a ele, é fruto do plantado no passado. Não é preciso coletar todos os dados e números entre esses dois jogos para entender que o jogo de hoje está ligado ao da década de 50. Basta entender as construções que os envolvem, e as ligações que estas tem entre si.


Acaba o primeiro tempo. Furet, irritado, levanta resmungando e, com sua boina na mão, diz adeus a Ricouer. Não iria terminar de assistir o jogo, iria para casa. Ricouer, um pouco mais bem humorado, ainda fez uma piadinha não muito bem-vinda dizendo que Furet esperaria o resultado do jogo para contabilizá-lo. Ricouer anota em seu caderninho: nenhum gol no primeiro tempo. Fred recebeu um cartão amarelo e Furet foi embora.

Veridiana V. Firmino - 7199735  

Um comentário:

  1. Bom texto, introduziu o conceito de memória para Ricoeur e em Furet sublinhou o contexto histórico dos jogos, os separando, numa linha diferente de outros textos que estabeleceram um processo entre os dois. Poderia ter tratado da narrativa também.

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