Era domingo. Final de
copa do mundo, 2014, Brasil. Para os poucos torcedores de idade mais
avançada, o jogo trazia muitas memórias: os times que disputavam o
último jogo do campeonato eram Brasil, que jogava em casa, e
Uruguai, embate já vivido em uma final de copa de mundo na década
de 50, no Maracanã.
Dois senhores, que –
surpreendentemente – mantinham-se ativos apesar da idade muitíssimo
avançada, sentavam-se respectivamente na cadeira B-237 e B-238 da
arquibancada azul. Um ao lado do outro, aguardavam o início da
partida. O cansaço, manifesto nas respirações lentas e desritmadas
entre si, dos dois velhos, mantia um silêncio repletos de
burburinhos vindos da arquibancada, intercalado por gritos de “Vai,
Brasil!”. Um tipo de silêncio que só se ouve quando se guardam
demais as palavras: o entorno se dilui no que se retém dentro de
si.
François Furet chegara
mais cedo e guardara o assento B-238 com sua boina, mesmo sabendo que
os ingressos eram numerados. Quando Ricouer chegou, deram-se um
tímido abraço seguido de uma saudação curta. Furet foi o primeiro
a romper o silêncio estabelecido após o breve descanso de seu velho
amigo. Perguntou-lhe se estava bem, como tinha sido a viagem e outras
perguntas que fazem pessoas que não se veem a algum tempo.
Continuaram a conversar durante o jogo, num ritmo mais desacelerado,
quando este começou.
F.: Incrível, não,
meu caro? Brasil e Uruguai se enfrentando em uma final de copa do
mundo. Forlan, Lugano, Neymar, Lucas... Incrível. Mais incrível é
que mais da metade dos torcedores, das pessoas que encontrei na rua,
insistem em tratar o jogo de hoje como continuidade do jogo de 1950.
Como se fosse uma repetição do que aconteceu naquela década.
(Neymar avança sozinho
para o campo adversário; chuta a gol, mas a bola bate na trave)
R.: Mas negar a
relevância da final de 50 para este jogo, com estas mesmas seleções,
neste mesmo estádio, é uma bobagem, meu amigo. O som – ou o
silêncio de mais de 100 mil pessoas – do jogo de 1950 está
reverberando até agora: ouço nas palavras das pessoas que encontro
na rua, um desejo que provém do resultado do jogo anterior. É
preciso pensar no passado para enxergar o que está interligado com
este no presente.
F.: O Júlio César não
é o Barbosa. E o Forlan não é o Ghiggia. E lembro bem que em 50
não tinha gente do lado de fora gritando contra a realização dos
jogos, protestando contra a própria copa. Em 50, o Brasil era outro.
E o Uruguai também. Não faz sentido nenhum aproximar esses dois
momentos sendo que eles não tem uma ligação única entre si. Entre
esses dois jogos, aconteceram mais de 40 jogos entre as duas
seleções. Se você pretende ligar esses acontecimentos, deveria
elencar todos os jogos e o contexto em que eles aconteceram e
problematizar tais informações, a fim de compreender mudanças e
continuidades entre esse período. Ignorá-los é dar passos largos e
tortos num caminho sem sentido.
R.: É claro que o
Júlio César não é o Barbosa. Mas você tem que admitir, Furet:
existe uma memória do jogo de 50 que determina o modo que os
jogadores estão jogando. Não que o Neymar seja dos quietinhos, mas
veja ali. Acabou de dar um carrinho no Lugano. É claro. Não estou
ignorando que estamos em outro contexto, mas a importância da
vitória para o Brasil, neste jogo, se faz muito maior devido a final
perdida na primeira e última copa realizada neste país.
F.: Ricouer, meu caro.
Não há relação direta entre os dois jogos. Independente disso, é
claro que esse jogo é um acontecimento histórico, pois é singular
e único, depois desses 90 minutos, nunca mais se repetirá. Sem
falar que não é um dos jogos triviais, um amistoso. É uma final de
copa do mundo. Os jogos de copa do mundo, arisco dizer, muitas vezes
são usados para incentivar o ufanismo ou conter descontentamentos
políticos. Mas mais uma vez lhe digo: não é necessário vincular o
jogo de 64 anos atrás ao de agora para que este tenha validade.
Ambos, por si só tem valor e não há necessidade dessa aproximação
sem sentido.
R.: Isso, meu caro
Furet, não cabe só a nós decidir. Um acontecimento também
torna-se um fato histórico de acordo com as reverberações
posteriores do mesmo... Eu ainda sigo acreditando que este jogo e o
sentimento coletivo em relação a ele, é fruto do plantado no
passado. Não é preciso coletar todos os dados e números entre
esses dois jogos para entender que o jogo de hoje está ligado ao da
década de 50. Basta entender as construções que os envolvem, e as
ligações que estas tem entre si.
Acaba o primeiro tempo.
Furet, irritado, levanta resmungando e, com sua boina na mão, diz
adeus a Ricouer. Não iria terminar de assistir o jogo, iria para
casa. Ricouer, um pouco mais bem humorado, ainda fez uma piadinha não
muito bem-vinda dizendo que Furet esperaria o resultado do jogo para
contabilizá-lo. Ricouer anota em seu caderninho: nenhum gol no
primeiro tempo. Fred recebeu um cartão amarelo e Furet foi embora.
Veridiana V. Firmino - 7199735
Bom texto, introduziu o conceito de memória para Ricoeur e em Furet sublinhou o contexto histórico dos jogos, os separando, numa linha diferente de outros textos que estabeleceram um processo entre os dois. Poderia ter tratado da narrativa também.
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