domingo, 6 de outubro de 2013


Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Departamento de História
Disciplina: Teoria da História II – 2º Sem. de 2013

Prof. José Antonio Vasconcelos
ALUNO: Rogério Ricciluca Matiello Félix – nº USP 7198380

Avalição 1: diálogo entre as personagens François Furet e Paul Ricoeur 

 “Quem escreve deve saber que suas criações não são mais suas, mas de quem as lê.” (Frase de agenda. Mas veio a calhar...)

Durante o intervalo após o primeiro tempo, comenta Paul RICOEUR com François FURET:

PR: - Este time está jogando muito mal, já não é o Uruguai de 1950!

FF: - Mas não pode mesmo ser, pois esse é um time que ficou no passado. Além disso, deve-se por os pingos nos “iis”: não é o time todo, mas parte dele: veja só como funciona bem a zaga com Lugano e Diego Godin. O ataque tem potencial, se comparado percentualmente ao Brasil, mas o meio de campo deixa a desejar... Além do mais, deve-se considerar a empolgação da torcida e os momentos históricos de ambos, por exemplo...

PR- Oras, Furet, eu vim aqui para assistir ao jogo! E além do mais o que você está fazendo é também uma narrativa. É o mesmo que os estruturalistas e marxistas que você tanto critica fazem e o que a historiografia do século XIX fez.

FF: Não é uma narrativa, é uma história serial! Os dados são testemunhos de acontecimentos passados, a serem comparados através da análise balanceada de dados qualitativos e quantitativos. Assim eles nos permite fazer uma História que parte de problemas, bem diferente de uma narrativa globalizante. Veja bem: 1950 marcou o apogeu futebolístico do Uruguai em seu segundo título da Copa e o quarto mundial, se contarmos com as Olimpíadas. Depois disso a pequena população, seu envelhecimento e o pequeno crescimento junto com o forte declínio econômico e também dos grandes times locais, como o Nacional e o Peñarol, levaram ao enfraquecimento da seleção. 

PR - Não Furet, você não está entendendo: elencar dados para uma análise serial, mesmo que o resultado de sua tese saia dos gráficos de um computador é ainda assim uma narrativa! É inescapável!

O nosso próprio ser no tempo só pode se dar por um narrar dos fenômenos que nos circundam através de uma linha lógica! Pela hermenêutica pré-figuramos a realidade, a configuramos em uma trama narrativa e depois ela é reconfigurada, ou por terceiros ou por nós mesmos. 

Tal e qual os jogadores no gramado fazem essa final do mundial, nós “fazemos o tempo”, como dizia S. Agostinho, que por sinal está atrás do gol do Uruguai fazendo uma prece a S. Jorge para ver se o Paulinho faz um gol... Só o “fazemos” por encadear fenômenos difusos; só os encadeamos ao narrar. Portanto narramos o tempo enquanto o fazemos. 

Meu caro Furet, da mesma maneira como você elencou seus dados e números sobre eventos tão minuciosos, eu fiz a generalização sobre La Celeste atendo-me a um dado igualmente selecionado de forma arbitrária, construindo ambos uma “intriga” narrativa. 

Tal seleção não poderia ter deixado de ser idiossincrática: da mesma maneira como Heidegger (que está nas cadeiras numeradas), diz que o historiador só determina qual segmento ou aspecto do passado se relacionará com o presente para ser escrito em função do “vigor de ter sido” (Gewessenheit), só aquilo que é “excepcional” é captado por nós. É justamente o que ocorre com nosso mapeamento cognitivo, o qual os arquitetos pós-modernos adoram confundir como no Hotel Bonaventure e também nesses estádios superfaturados que fizeram para a Copa no Brasil...

 Assim, quando eu generalizei los orientales, eu captei a parte “muito fraca” e não vi a(s) “parte(s) forte(s)” que porventura existem, pois isto depende do juízo de valor do observador, que as escolhe arbitrariamente dentre o rol de fenômenos possíveis de serem observados.

E o mesmo ocorre contigo, Furet: mesmo que avalie qualitativamente a zaga e o ataque, quantitativamente o numero de chutes a gol, os dados socioeconômicos da torcida, sua atenção nunca capta a totalidade e muito menos constitui a verdade absoluta, apesar de os números serem expressões fidedignas de observação.  

É a mesma coisa que narrar a duração de um evento: o 16 de julho de 1950 pode ser um começo, meio ou fim. Tal dia marca o auge do time Uruguaio e o inicio de sua decadência posterior; já para o Brasil, apesar da derrota, essa data iniciou uma fase de ouro, que se manifestou com a vitória em 1958 e outras quatro até 2002! 

FF: acho que nós não estamos falando a mesma língua Ricoeur! Eu estou tratando de aspectos metodológicos da História, e você da própria forma como nós seres humanos vivenciamos o tempo! 

PR: eu compreendo Furet: o que estou te dizendo não se limita ao fazer metodológico desse tipo específico de narrativa que é a História, mas digo que as tuas preocupações estão apenas relacionadas com a prefiguração, a primeira mimese do processo hermenêutico, da coleta das fontes e compreensão do código linguístico pelo historiador; e com a configuração, a segunda mimese, quando se escreve a trama segundo o estilo de historiografia que se quer seguir. Você o faz com a esperança de ser objetivo na apresentação das fontes a ponto de convencer aqueles que farão a reconfiguração de tal trabalho, a terceira mimese. 

Quanto a mim, dou grande atenção a todo esse ciclo hermenêutico, especialmente quando operado com o intuito historiográfico, pois ele permite reabilitar, quando da realização da terceira mimese, a própria primeira mimese. É dessa forma que a História se torna um terceiro tempo na fronteira entre o tempo do S. Agostinho e do Aristóteles, que não gosta muito de futebol, mas decerto virá para a Olimpíada. 

Não discordo dessa preocupação dos grandes historiadores que rejeitaram o estatuto de narratividade da História, mas digo que eles deveriam se dar conta de que o “desfile de números” apresentados em suas teses com ares de cientificidade continuam sendo narrativas. Aliás, bem que eles poderiam fazer textos mais agradáveis à leitura!

FF: muito provavelmente eles lhe aconselhariam isto mesmo Ricoeur... Agora vamos assistir o segundo tempo e ver se o Brasil vai ganhar ou se o Uruguai comprou o jogo, já que segundo o Marx eles só ganham de novo se for uma farsa!

Um comentário:

  1. Texto muito bom, referências teóricas bem consistentes. O Ricoeur foi tratado com muito esmero no diálogo, assim poderia ter dado mais "voz" ao Furet e criado maior confronto de ideias, porém, mesmo assim, a diferença entre ambos ficou visível tendo em vista a narrativa em Ricoeur e as séries numéricas de Furet. já que citou Agostinho e Aristóteles na conversa, poderia ter explorado mais as diferentes concepções de tempo.

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