segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Mr. Nobody, Ricoeur e Furet: algumas intertextualidades

Mr. Nobody aponta uma inversão narrativa deveras interessante – e, num primeiro momento, complexa – aos olhos de seu espectador: ao contrário dos ortodoxos “começo, meio e fim”, uma mesma vida – a da personagem principal – é apresentada segundo perspectivas distintas. Assim, eis que se modifica a sua principal característica enquanto narrativa: se outrora era a singularidade que lhe conferia sentido, agora ela é – ou deve ser – entendida segundo sua pluralidade.
            Fosse a inteligibilidade de uma narrativa dada em função de um enquadramento temporal retilíneo, então Mr. Nobody não cumpriria com seus objetivos: a cada decisão tomada pela personagem, abre-se uma nova possibilidade de experiência – em detrimento de outra, trabalhada logo em seguida quando do retorno ao passado e ao momento imediatamente anterior ao da tomada de decisão.
            Se, por um lado, as possibilidades são plurais, o “fato histórico” permanece eleito, como afirma François Furet em sua definição de “história acontecimental”, pelo “historiador” da trama: o próprio personagem em sua versão idosa, entrevistado e induzido a lembrar-se de sua própria vida: é ele quem seleciona os momentos cruciais, questionando subjetivamente a partir do “e se não tivesse acontecido daquela forma”, como uma história em que se é necessário retornar ao ponto de partida, reformular a ação nele contida e tomar nota das consequências que dela se desdobraram.
            Um exemplo se faz necessário: Na cena entre 40m46s e 41m36s, Nemo recusa o convite de Ana, nova colega da turma escolar, para nadar com seus amigos, chamando-os “idiotas” e sendo, em seguida, repudiado por ela. Ainda dentro da mesma narrativa, anos depois, Nemo indaga a si mesmo: “E se eu tivesse aceitado nadar?” – As coisas teriam sido possível e provavelmente diferentes, conviria completar. Outro exemplo, deveras evidente na construção das narrativas: a escolha (e aqui retomamos a supracitada “decisão”) de Nemo em ficar com seu pai ou com sua mãe, no momento em que eles se divorciam. Para cada escolha, ramificam-se inúmeras possibilidades.
            É, em última instância, uma narrativa sobre o que poderia ter sucedido. É o que Paul Ricoeur, ao analisar a Poética de Aristóteles, infere: se a História narra o que aconteceu, a Poesia narra o que poderia ter acontecido. (muito embora seja digno de nota que ela é organizada e balizada cronologicamente, tendo um começo – o nascimento de Nemo – e um final – o momento em que, já idoso, é entrevistado: parte-se de um mesmo começo e alcança-se, independentemente do meio que se adota para tal, um mesmo fim).
            De toda forma, o objeto do filme é como a representação da ação humana pode interferir na configuração da narrativa. Trata-se, novamente citando Ricoeur, da ideia de intriga, a ação humana da qual se desdobram todas as consequências, segundo sua interpretação da Poética: a narrativa do filme produz no espectador, a partir da representação das ações humanas, a catarse, isto é, a identificação entre as emoções do eu-poético, Nemo, e as de quem o observa – nós, os espectadores. A identidade se dá sobre o fato de conseguirmos estabelecer memória, mas, ao contrário de Nemo, não termos a capacidade de mensurar as consequências de nossas ações ou percebermos as variantes oriundas de decisões diferentes que poderiam ser tomadas.
            Supondo que, analogamente, um indivíduo tenha a possibilidade de ser entrevistado em sua extrema velhice, assim como foi Nemo, caberia unicamente a sua imaginação supor como teriam sido as coisas se tivesse procedido de outro modo senão daquele que procedeu, voltando à ideia de uma narrativa monopolar, singularista. Enfim, trata-se do primeiro tipo de mimese que Ricoeur orquestra em sua obra: o conteúdo narrativo é previamente sabido e a narrativa é teleológica, é a “lembrança do futuro”, da qual Nemo se tornou refém. E sobre a narrativa enquanto possibilidade do “fazer História”, afirma, enfim, Furet, ser o tempo a matriz de sua construção, instrumentada através de “momentos” e “períodos”.

Eduardo Polidori Villa Nova de Oliveira | 6838291

2 comentários:

  1. Caro Eduardo,

    A ideia central, apresentada já no primeiro parágrafo e que me parece ser o grande mote do texto, diz respeito à pluralidade do conceito de tempo. Por outro lado, insere a discussão do tempo na perspectiva da construção da narrativa, o que constitui a proposta central de Paul Ricoeur. Analisando a trajetória – ou seria mais lícito dizer “as trajetórias”? – de Mr. Nobody, você coloca em xeque o pressuposto da linearidade do tempo, atitude teórica que abre inúmeras perspectivas.
    A seguir, num movimento de aguda perspicácia analítica, você cria um contraponto interessante entre a perspectiva da vastidão de possibilidades do filme – e por que não dizer da própria história enquanto processo e reflexão historiográfica? – e a seleção operada pelo historiador no processo de criação do fato histórico. Este me parece um exercício teórico fundamental tanto em Ricoeur como em Furet.
    Partindo da leitura de Ricoeur, julguei muito pertinente o contraponto entre História e Poesia. O filme fornece, de fato, matéria-prima a ser explorada. Afinal de contas, a definição de poesia de Aristóteles versa sobre “o que poderia ter acontecido”. Este parece-me ser exatamente o argumento central do filme. Por fim, você consegue se utilizar do filme para abordar a problemática das três mimeses em Ricoeur. Grande análise!

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  2. Lindo texto, que centralizou a questão da pluralidade e da possibilidade histórica no debate sobre o filme. Cotejou Ricoeur e Furet para a explicação formal do filme - a forma da não-linearidade do tempo ao mesmo tempo em que há os encadeamentos dos fatos históricos. Se a questão do "que poderia ter acontecido" é central no seu argumento sobre o filme, conforme apontou também o Ronaldo, você a relacionou com a Poética de Aristóteles, o que me lembra as aproximações entre História e Literatura, tão cara aos pós-modernos. Num certo sentido, não podemos pensar naquilo que já aconteceu, considerando quais eram os projetos fracassados, ou seja, que poderiam ter sido? Numa tentativa talvez de refletir sobre utopias e alternativas ao status-quo. Enfim, muito bom texto!

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