Influenciado pela
historiografia dos Annale, ou pelas empresas de seu amigo Lévi-Strauss com a etnologia
estrutural - que, inclusive, falara muito bem de uma terra onde canta o sabiá - François Furet decide que o
futebol brasileiro talvez seja algo interessante a ser estudado enquanto dado
histórico. O que ele não sabia é que, ao comprar seus ingressos para a final
entre o Brasil e Uruguai de 2014, encontraria a cadeira ao lado ocupada por Paul
Ricoeur. Constrangimentos à parte, ambos se sentam, um ao lado do outro, no
camarote do Maracanã para a grande partida.
_Ilustre momento.
_Muito pelo contrário,
arbitrário como qualquer outro, Ricoeur. Diga-me, o que lhe traz aqui?
_Bom, sabe muito bem
que eu tenho dedicado um esforço demasiado nos meus estudos sobre as funções
heurísticas da narrativa, e por um je-ne-sais-quoi,
durante minha licença prêmio, decidi que poderia ser frutífero vir ao Rio assistir
a um espetáculo à la manière brésilienne.
Sem falar que, em um espetáculo cheio de estatísticas e com pretensões à
notação científica, a narrativa surge mais forte do que nunca... Veja esta
torcida! Como isto me fascina!
_Suas resoluções
poéticas acerca da narrativa em socorro de uma deficiência ontológica do tempo
já falam o bastante sobre si mesmas, Ricoeur... Vamos aos canapés e aos
proseccos deste camarote, antes que os novos ricos comecem a chegar e acabem
com tudo.
_Não, obrigado. Vou me contentar
com meus amendoins. E alguém precisa cuidar desse monte de papeis que você leva
consigo a todo lugar, não é, Furet?
_Ah, obrigado. Caso
queira saber, são notações acerca de todos os placares de jogos da Seleção
Brasileira e Uruguaia. Pretendo fazer uma análise de ambas as seleções durante
o jogo, para algumas comparações. É impossível pensar nesse jogo de hoje sem a
final do Maracanazzo, não acha? Para mim, a análise comparativa dos placares me
fará pensar melhor no valor desse jogo posteriormente.
_Você e o
estilhaçamento da história, hein, Ricoeur. Por mais que você insista, não
percebe que os dados quantitativos não descronologizarão a história, meu caro?
A narrativa é em si a experiência temporal humana, e o tempo jamais será um ser
em si. O ato de narrar sempre será o de encadear acontecimentos segundo uma
causalidade e, por mais que você insista nos modelos quantitativos e seriais,
as tensões entre subjetividade e narratividade jamais serão reduzidas. Vá lá ao
buffet buscar seus petiscos, o jogo
está prestes a começar.
Minutos depois.
_Obrigado, Ricoeur.
Segure esta taça um instante, vou pegar minhas notas. Veja cá, Ricoeur. O que
quero lhe mostrar é que não há lugar na história para indeterminação
conceitual. Embora o ato de narrar seja em si um encadeamento de fatos, os
procedimentos me falam mais do que as interpretações feitas, oras! Quero lhe
mostrar que, embora eu tenha aqui inúmeros dados acerca de ambas as seleções - 21
títulos uruguaios, 72 títulos brasileiros, 2 taças mundiais uruguaias e 5 taças
brasileiras, e tudo mais – minhas análises só me permitem descrever e encadear
esses fatos; as interpretações e explicações são minhas, e não das minhas
fontes! Aliás, minhas explicações dizem que vão dar Brasil (risos).
_Mas é nisso que sempre
nos embatemos, Furet! O narrar da história jamais eliminará sua referência
cruzada com a ficção! O fato histórico mantém algo da referência metafórica com
as poéticas quando o passado só pode ser reconstituído pela imaginação! Eu
prefiro acreditar que o motivo que determina a historicidade dos fatos, como já
dizia Heidegger, é o vigor com o qual eles se apresentam.
_É aí que você me
contraria, Ricoeur. Os estruturalistas, sacrificando-se em desideologizar as
ciências, demonstrando o modo como o homem pode ser reduzido aos seus
mecanismos comuns, evitando a eleição de “grandes” assuntos e das grandes
evoluções, sem falar nos mitos...
_O que tem produzido
narrativas desinteressantes, ao invés de narrativas descronologizadas, por
sinal. Furet, você me faz parecer um velho (ainda mais) ranzinza ao falar sobre
essas coisas numa final de Copa do Mundo... Mas é preciso lembrar que o ato de
narrar é um dado imprescindível da experiência do ser-no-tempo, embora sua
careta de estruturalista não negue seu desconforto com esse fato. Assim, o conceito
de História do qual estou falando tem um alcance mais amplo se comparado às
suas ideias de narrativa... Basta pensarmos que ela exige, antes de acontecer,
uma coerência com atributos para que seja tomada como verossímil, sejam suas
estruturas, suas fontes simbólicas e o caráter datável e público da
temporalidade; em segundo lugar, o seu desenrolar é, acima de tudo, mediar
acontecimentos criando uma relação de causalidade e totalidade que formam um
todo, uma história; e em terceiro lugar, o ato de narrar tem sua conclusão no
ouvinte, que marca a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do receptor.
Nem você, nem os estruturalistas conseguem fugir disso, Furet.
_Pois é... Bons
entendedores dirão que eu jamais disse algo sobre o fim das narrativas,
Ricoeur.
_Mas parecem ter
ignorado o caráter dialético próprio da narrativa, como se esta fosse um modelo
ordenado e consonante a ser criticado. Esqueceram-se que a narrativa é, por
excelência, um modelo de concordância discordante.
_Oras Ricoeur! Você
está para a desordem assim como eu estou para a ordem, e ponto final. Deixe-me
buscar com a hostess alguns
periódicos para consultar os placares dos outros jogos.
_Pois vá! Aposto que
perderá o jogo comparando números. Me perdoe, mas estou aqui é para ver a bola
rolar!
Alexandre Rocha
da Silva, 7164782
Texto muito bom, manteve Furet ao lado da “ordem” e Ricoeur da “desordem”, como outros posts, mas desenvolveu profundamente a questão da narrativa nos autores, sem desconsiderar certa coloquialidade que um diálogo num estádio de futebol requer. O comentário inicial: “em um espetáculo cheio de estatísticas e com pretensões à notação científica, a narrativa surge mais forte do que nunca” foi bem apontado, visto que os analistas de futebol buscam cada vez mais ser mais “científicos”. Texto bem escrito e interessante.
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