Era grande a expectativa para
a final da Copa. Na opinião dos principais comentaristas, o Brasil havia feito
uma excelente campanha. A televisão, as rádios e os jornais de todo o país haviam
criado, afinal, um imenso favoritismo em prol do Brasil. Pesava ainda a memória
coletiva da derrota brasileira diante do Uruguai na final da Copa de 1950. Sem
dúvida, o jogo seria a reedição de mais um grande clássico do futebol mundial. No
dia da partida, as ruas estavam abarrotadas de pessoas, mas não em seus afazeres
cotidianos; aquele não era – pelo menos para a imensa maioria dos brasileiros –
um dia de trabalho. Os passos apressados, seguia Paul Ricoeur. O trânsito de
pessoas em seu caminho não estava ajudando em nada, e um tanto quanto
aborrecido perguntava-se o porquê de não ter saído mais cedo de casa. Quanto
mais se acercava do “Itaquerão” mais sentia que os séculos de que precisaria para encontrar um lugar na arquibancada
não caberiam nos doze intervalos de seu relógio, que aliás consultava a cada
instante. Ricoeur constatou, com um desagrado sempre crescente, que a fila à
entrada do estádio parecia quilométrica. Ocupando o último lugar, verificou mais
uma vez o seu relógio: os ponteiros marcavam exatamente 14h00. O estar ali
entre tantas outras pessoas que também assistiriam à partida não poderia deixar
de tranquilizá-lo, ao menos em parte. Todos estavam eufóricos, comentando
detalhes das últimas partidas disputadas pela seleção brasileira e apontando os
jogadores que, em sua opinião, seriam os grandes astros da final. Num instante
– e Ricoeur deu-se conta apenas depois –, já estava dentro do estádio, à
procura de seu lugar. Consultando, como de costume, o seu relógio, viu que
haviam transcorrido aproximadamente cinquenta minutos enquanto estivera na
fila, apesar da sensação de que o tempo voara nesse ínterim. Subindo algumas
fileiras, notou que as arquibancadas estavam já quase totalmente ocupadas. Avistou,
ao longe, apenas um assento livre. Aproximando-se, notou que ao lado do assento
vazio sentava-se um grande amigo seu, François Furet. Cumprimentaram-se com
entusiasmo, e Ricoeur finalmente ocupou o seu lugar.
Faltavam ainda alguns
instantes para o início da partida quando Furet, verificando a velha pasta de
couro que jazia em seu colo, sacou de dentro dela algumas folhas de papel, copiosamente
anotadas.
– Durante as últimas semanas
refleti sobre a final da Copa. Coloquei-me o problema das possibilidades de
vitória de ambas as equipes, a partir do histórico de seus confrontos. Minha
hipótese é a de que o Brasil ganhará, mas não por goleada.
– É mesmo? – retorquiu
Ricoeur – e como podes afirmá-lo?
– Partindo de minha hipótese,
procurei embasamento na documentação existente. Consultei muitos artigos que
coletei de periódicos brasileiros e uruguaios, selecionando somente os dados
passíveis de serem dispostos estatisticamente. O computador pode ser de grande
valia em ocasiões como esta. Diria que o Brasil vencerá. Mas é claro que não
podemos ter certeza disso, seria teleologia…
– O que mostram os dados, François? –
perguntou Ricoeur, demonstrando grande interesse pelas anotações do amigo.
– Vejamos – respondeu
Furet, revirando entusiasmado suas anotações. – Pelos cálculos que fiz, Brasil
e Uruguai encontraram-se 71 vezes em jogos. Os brasileiros foram vencedores em
35 partidas. Uruguaios, em contrapartida, venceram apenas 20 vezes. Pensando
apenas na série composta pelos jogos da década de 90, o Uruguai venceu apenas 4
partidas, enquanto os brasileiros foram vitoriosos em 8.
– Impressionante –
respondeu Ricoeur, realmente impressionado pela meticulosidade das estatísticas
feitas por Furet.
– E tem mais – prosseguiu
Furet, em tom triunfante – pensando apenas a série formada pelos gols ao longo
de todas as partidas, temos o seguinte resultado: brasileiros marcaram 129
gols, enquanto uruguaios apenas 91. Por fim, o Brasil tem a grande vantagem de jogar
em casa. Das 35 partidas vencidas pelos brasileiros, 29 foram disputadas aqui.
O possível efeito
profético da fala de Furet foi, no entanto, destruído pela entrada dos
jogadores no gramado. A onda de aplausos, assobios e gritos que irrompeu das arquibancadas
foi verdadeiramente ensurdecedora. Quando o árbitro apitou, marcando o início
da partida, Ricoeur já estava munido de sua pequena caderneta, a caneta em
riste. Normalmente, Ricoeur assistia
cerca de 15 minutos da partida para em seguida gastar de dois a três minutos fazendo
breves comentários sobre as ações dos jogadores em campo. Claro que eventuais
acelerações no tempo do jogo não passavam despercebidas, merecendo comentários
mais frequentes.
Enfim, chegaram aos 45 minutos do
primeiro tempo sem que qualquer gol fosse marcado. E teve início o intervalo.
– Este primeiro tempo presenciou um maciço esforço de ataque dos
brasileiros. Fred e Neymar Jr. atuaram em perfeita sintonia, e os inúmeros
grandes cruzamentos do primeiro explicam o porquê do segundo ter conseguido chutar
para o gol nada menos do que 4 vezes. No entanto, a atuação impecável do zagueiro
Lugano e as defesas do goleiro explicam o placar de 0x0. No geral, os uruguaios
estão apostando na defensiva.
– Foram ao todo 4
tentativas de gol, 3 faltas e 1 cartão vermelho. – retrucou Furet, que parecia
entusiasmado com um novo dado. – Há algumas semanas estive em Montevidéu e tive
a indescritível oportunidade de entrevistar Obdúlio Varela.
– É mesmo? – admirou-se
Ricoeur – nem sabia que ainda está vivo…
– Vivíssimo! – retorquiu
Furet, acrescentando em tom jocoso: “tanto quanto eu ou você!” Após uma breve
pausa, retomou o tom normalmente sério: – Temperamento difícil, mas homem de
grande caráter. Na entrevista que concedeu a mim, ele se queixou do desempenho
uruguaio nesta Copa, destacando a grande desvantagem de disputar uma partida
fora de casa. Todo o favoritismo brasileiro exercerá, na perspectiva de Varela,
uma influência nefasta sobre o moral dos uruguaios. Chegou inclusive a dizer:
“Desta vez, eles não terão a mim para encorajar a equipe e segurar o jogo!” Ou
seja, levando em conta a importância do personagem que me prestou esse
depoimento, temos mais um elemento a confirmar a hipótese da vitória
brasileira!
– Não questiono a
validade de um testemunho oral, principalmente tendo em vista aquele que o
emitiu. No entanto, acredito que seja necessário colocar algumas ressalvas a
essa fala. Você não deve perder de vista que o tempo não existe enquanto algo
independente de nossa percepção. Ou seja, o relato do Obdúlio Varela é mediado
pelo presente, pelos anseios e pelas prioridades que ele tem no tempo presente.
A memória que ele tem dos jogos de que participou também muda. Hoje, o papel
que ele desempenhou no passado talvez lhe pareça mais importante do que nunca. A
ponto de achar que sem sua ajuda os uruguaios não têm chances de vencer…
– Devo admitir que tens
razão. – disse Furet, mas suas palavras ainda demonstravam certa incredulidade.
– No entanto, ainda temos as minhas estatísticas. Os processos de contagem jamais
falham. A minha hipótese de vitória do Brasil encontra justificativa na
história dos enfrentamentos entre brasileiros e uruguaios.
– Sim, não discordo da
eficiência e da legitimidade dos métodos matemáticos. No entanto, não tenho
favoritismo em matéria de futebol. Acredito que somente o final de uma
determinada sequência de acontecimentos é que confere sentido ao todo. Ou seja,
apenas o término da própria partida nos traz o resultado. A partir dele é que
podemos avaliar adequadamente o desempenho de cada jogador.
Observando, a seguir, a
imensa multidão de torcedores que aproveitavam o intervalo para promover um
intenso debate em torno das perspectivas para o segundo tempo, Ricoeur prosseguiu:
– Veja só isso, François.
Toda a ação dos milhares de jogadores nos gramados do mundo inteiro ao longo da
história, matéria-prima para as análises de grandes comentaristas, estampadas
nas páginas dos jornais, lidos e comentados pelos leitores, ávidos por novas
informações. A experiência de cada jogo assistido vai refinando a capacidade
analítica de cada torcedor. Uma história de grandes nomes que se ergue dos
gramados e a eles retorna, a cada nova partida, a cada nova criança que, como as
gerações que a precederam, se torna mais uma aficionada por futebol! A cada novo
menino que, por que não dizê-lo, realiza o sonho de se tornar jogador de futebol!
Furet pareceu dar sinais
de ânimo para uma resposta, mas suas possíveis palavras foram imediatamente
abafadas pelo apito do árbitro. Começava, enfim, o segundo tempo, trazendo
consigo a imensa expectativa de milhares de corações para os próximos quarenta
e cinco minutos.
Ronaldo Montolezi Canela Pauletto – N°USP 6839393
Achei que captou o espírito dos dois autores em questão! O trecho "No entanto, acredito que seja necessário colocar algumas ressalvas a essa fala. Você não deve perder de vista que o tempo não existe enquanto algo independente de nossa percepção. Ou seja, o relato do Obdúlio Varela é mediado pelo presente, pelos anseios e pelas prioridades que ele tem no tempo presente. A memória que ele tem dos jogos de que participou também muda. Hoje, o papel que ele desempenhou no passado talvez lhe pareça mais importante do que nunca. A ponto de achar que sem sua ajuda os uruguaios não têm chances de vencer…" é uma ótima reflexão sobre a questão do tempo e da narrativa, suas causas e efeitos, principalmente.
ResponderExcluirNo meu diálogo também usei o argumento da duração do jogo como fator importante no entendimento do evento em si.
E, para finalizar, Ricoeur iria adorar ler as narrativas de revistas e jornais após o jogo, como sugerido no parágrafo final!
Ótimo texto.
Talita Damaceno Rodrigues, 6584733
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ResponderExcluirTexto bem articulado, fundamentado e embasado em relação aos conceitos do autor. Acho que não precisava de uma introdução tão extensa, poderia ter entrado direto no diálogo. Concordo com a Talita sobre a frase acima, realmente, muito inspiradora para pensarmos nos temas do curso.Mas em relação aos comentadores de futebol, que também foi referência no texto da Talita, não acredito que sirvam de narrativas interessantes para Ricoeur, pois como bem disse Alexandre em seu texto, no mundo dos comentadores especialistas de futebol têm crescido cada vez mais a pretensão a serem "científicos", perdendo um pouco da graça do futebol, onde qualquer um pode comentar o que quiser, sem ser "especialista".Acredito que para Ricoeur a partida em si já seria o suficiente para uma interpretação baseada nas suas concepções de História, nas quais a narrativa tem grande papel.
ResponderExcluirObs- "Taís- História" é a estagiária!
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirCara Taís,
ExcluirApenas agora li o seu comentário... Peço, portanto, desculpas pelo atraso na resposta. Agradeço pelas suas palavras tão estimulantes, e em particular pela paciência em ler meu texto relativamente extenso.
Quanto à minha introdução, creio que seja absolutamente necessária, pois cumpre uma função específica em relação ao conjunto do texto. Primeiramente, exerce um papel importante no tocante aos aspectos propriamente literários, ao fornecer descrições importantes do contexto das falas. Ou seja, ao auxiliar na composição da narrativa. Em segundo lugar, se você atentar para a intencionalidade das situações narradas, notará facilmente que não são aleatórias, meramente "decorativas". Ao contrário, todas versam sobre a vivência efetiva do tempo (expressa, por exemplo, nas referências pontuais aos horários) e sobre a mutiplicidade da percepção humana do tempo, temas fundamentais em Ricoeur.
Por outro lado, a referência aos comentaristas foi uma tentativa - não saberia dizer se bem-sucedida! - de contemplar a problemática do círculo hermenêutico de Ricoeur, marcado pelas mimeses I, II e III. Ou seja, o jogo de futebol enquanto vivência a partir da qual se constroem as narrativas (não apenas dos comentaristas ditos "profissionais", já que todo espectador é um comentarista - ainda que isso escape ao circuito midiático), que por sua vez voltam-se para o jogo, a fim de interferir nas vivências em campo.
Mais uma vez, agradeço-te pela dedicação, não apenas no tocante a este trabalho, mas ao curso como um todo! Abraços e boas festas!