segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Memórias Póstumas do Itaquerão

Era grande a expectativa para a final da Copa. Na opinião dos principais comentaristas, o Brasil havia feito uma excelente campanha. A televisão, as rádios e os jornais de todo o país haviam criado, afinal, um imenso favoritismo em prol do Brasil. Pesava ainda a memória coletiva da derrota brasileira diante do Uruguai na final da Copa de 1950. Sem dúvida, o jogo seria a reedição de mais um grande clássico do futebol mundial. No dia da partida, as ruas estavam abarrotadas de pessoas, mas não em seus afazeres cotidianos; aquele não era – pelo menos para a imensa maioria dos brasileiros – um dia de trabalho. Os passos apressados, seguia Paul Ricoeur. O trânsito de pessoas em seu caminho não estava ajudando em nada, e um tanto quanto aborrecido perguntava-se o porquê de não ter saído mais cedo de casa. Quanto mais se acercava do “Itaquerão” mais sentia que os séculos de que precisaria para encontrar um lugar na arquibancada não caberiam nos doze intervalos de seu relógio, que aliás consultava a cada instante. Ricoeur constatou, com um desagrado sempre crescente, que a fila à entrada do estádio parecia quilométrica. Ocupando o último lugar, verificou mais uma vez o seu relógio: os ponteiros marcavam exatamente 14h00. O estar ali entre tantas outras pessoas que também assistiriam à partida não poderia deixar de tranquilizá-lo, ao menos em parte. Todos estavam eufóricos, comentando detalhes das últimas partidas disputadas pela seleção brasileira e apontando os jogadores que, em sua opinião, seriam os grandes astros da final. Num instante – e Ricoeur deu-se conta apenas depois –, já estava dentro do estádio, à procura de seu lugar. Consultando, como de costume, o seu relógio, viu que haviam transcorrido aproximadamente cinquenta minutos enquanto estivera na fila, apesar da sensação de que o tempo voara nesse ínterim. Subindo algumas fileiras, notou que as arquibancadas estavam já quase totalmente ocupadas. Avistou, ao longe, apenas um assento livre. Aproximando-se, notou que ao lado do assento vazio sentava-se um grande amigo seu, François Furet. Cumprimentaram-se com entusiasmo, e Ricoeur finalmente ocupou o seu lugar.
Faltavam ainda alguns instantes para o início da partida quando Furet, verificando a velha pasta de couro que jazia em seu colo, sacou de dentro dela algumas folhas de papel, copiosamente anotadas.
– Durante as últimas semanas refleti sobre a final da Copa. Coloquei-me o problema das possibilidades de vitória de ambas as equipes, a partir do histórico de seus confrontos. Minha hipótese é a de que o Brasil ganhará, mas não por goleada.
– É mesmo? – retorquiu Ricoeur – e como podes afirmá-lo?
– Partindo de minha hipótese, procurei embasamento na documentação existente. Consultei muitos artigos que coletei de periódicos brasileiros e uruguaios, selecionando somente os dados passíveis de serem dispostos estatisticamente. O computador pode ser de grande valia em ocasiões como esta. Diria que o Brasil vencerá. Mas é claro que não podemos ter certeza disso, seria teleologia…
 – O que mostram os dados, François? – perguntou Ricoeur, demonstrando grande interesse pelas anotações do amigo. 
– Vejamos – respondeu Furet, revirando entusiasmado suas anotações. – Pelos cálculos que fiz, Brasil e Uruguai encontraram-se 71 vezes em jogos. Os brasileiros foram vencedores em 35 partidas. Uruguaios, em contrapartida, venceram apenas 20 vezes. Pensando apenas na série composta pelos jogos da década de 90, o Uruguai venceu apenas 4 partidas, enquanto os brasileiros foram vitoriosos em 8.
– Impressionante – respondeu Ricoeur, realmente impressionado pela meticulosidade das estatísticas feitas por Furet.
– E tem mais – prosseguiu Furet, em tom triunfante – pensando apenas a série formada pelos gols ao longo de todas as partidas, temos o seguinte resultado: brasileiros marcaram 129 gols, enquanto uruguaios apenas 91. Por fim, o Brasil tem a grande vantagem de jogar em casa. Das 35 partidas vencidas pelos brasileiros, 29 foram disputadas aqui.
O possível efeito profético da fala de Furet foi, no entanto, destruído pela entrada dos jogadores no gramado. A onda de aplausos, assobios e gritos que irrompeu das arquibancadas foi verdadeiramente ensurdecedora. Quando o árbitro apitou, marcando o início da partida, Ricoeur já estava munido de sua pequena caderneta, a caneta em riste.  Normalmente, Ricoeur assistia cerca de 15 minutos da partida para em seguida gastar de dois a três minutos fazendo breves comentários sobre as ações dos jogadores em campo. Claro que eventuais acelerações no tempo do jogo não passavam despercebidas, merecendo comentários mais frequentes.   
 Enfim, chegaram aos 45 minutos do primeiro tempo sem que qualquer gol fosse marcado. E teve início o intervalo.
– Este primeiro tempo presenciou um maciço esforço de ataque dos brasileiros. Fred e Neymar Jr. atuaram em perfeita sintonia, e os inúmeros grandes cruzamentos do primeiro explicam o porquê do segundo ter conseguido chutar para o gol nada menos do que 4 vezes. No entanto, a atuação impecável do zagueiro Lugano e as defesas do goleiro explicam o placar de 0x0. No geral, os uruguaios estão apostando na defensiva.  
– Foram ao todo 4 tentativas de gol, 3 faltas e 1 cartão vermelho. – retrucou Furet, que parecia entusiasmado com um novo dado. – Há algumas semanas estive em Montevidéu e tive a indescritível oportunidade de entrevistar Obdúlio Varela.
– É mesmo? – admirou-se Ricoeur – nem sabia que ainda está vivo…
– Vivíssimo! – retorquiu Furet, acrescentando em tom jocoso: “tanto quanto eu ou você!” Após uma breve pausa, retomou o tom normalmente sério: – Temperamento difícil, mas homem de grande caráter. Na entrevista que concedeu a mim, ele se queixou do desempenho uruguaio nesta Copa, destacando a grande desvantagem de disputar uma partida fora de casa. Todo o favoritismo brasileiro exercerá, na perspectiva de Varela, uma influência nefasta sobre o moral dos uruguaios. Chegou inclusive a dizer: “Desta vez, eles não terão a mim para encorajar a equipe e segurar o jogo!” Ou seja, levando em conta a importância do personagem que me prestou esse depoimento, temos mais um elemento a confirmar a hipótese da vitória brasileira!     
– Não questiono a validade de um testemunho oral, principalmente tendo em vista aquele que o emitiu. No entanto, acredito que seja necessário colocar algumas ressalvas a essa fala. Você não deve perder de vista que o tempo não existe enquanto algo independente de nossa percepção. Ou seja, o relato do Obdúlio Varela é mediado pelo presente, pelos anseios e pelas prioridades que ele tem no tempo presente. A memória que ele tem dos jogos de que participou também muda. Hoje, o papel que ele desempenhou no passado talvez lhe pareça mais importante do que nunca. A ponto de achar que sem sua ajuda os uruguaios não têm chances de vencer…
– Devo admitir que tens razão. – disse Furet, mas suas palavras ainda demonstravam certa incredulidade. – No entanto, ainda temos as minhas estatísticas. Os processos de contagem jamais falham. A minha hipótese de vitória do Brasil encontra justificativa na história dos enfrentamentos entre brasileiros e uruguaios.
– Sim, não discordo da eficiência e da legitimidade dos métodos matemáticos. No entanto, não tenho favoritismo em matéria de futebol. Acredito que somente o final de uma determinada sequência de acontecimentos é que confere sentido ao todo. Ou seja, apenas o término da própria partida nos traz o resultado. A partir dele é que podemos avaliar adequadamente o desempenho de cada jogador.
Observando, a seguir, a imensa multidão de torcedores que aproveitavam o intervalo para promover um intenso debate em torno das perspectivas para o segundo tempo, Ricoeur prosseguiu:
– Veja só isso, François. Toda a ação dos milhares de jogadores nos gramados do mundo inteiro ao longo da história, matéria-prima para as análises de grandes comentaristas, estampadas nas páginas dos jornais, lidos e comentados pelos leitores, ávidos por novas informações. A experiência de cada jogo assistido vai refinando a capacidade analítica de cada torcedor. Uma história de grandes nomes que se ergue dos gramados e a eles retorna, a cada nova partida, a cada nova criança que, como as gerações que a precederam, se torna mais uma aficionada por futebol! A cada novo menino que, por que não dizê-lo, realiza o sonho de se tornar jogador de futebol!
Furet pareceu dar sinais de ânimo para uma resposta, mas suas possíveis palavras foram imediatamente abafadas pelo apito do árbitro. Começava, enfim, o segundo tempo, trazendo consigo a imensa expectativa de milhares de corações para os próximos quarenta e cinco minutos.   


Ronaldo Montolezi Canela Pauletto – N°USP 6839393

5 comentários:

  1. Achei que captou o espírito dos dois autores em questão! O trecho "No entanto, acredito que seja necessário colocar algumas ressalvas a essa fala. Você não deve perder de vista que o tempo não existe enquanto algo independente de nossa percepção. Ou seja, o relato do Obdúlio Varela é mediado pelo presente, pelos anseios e pelas prioridades que ele tem no tempo presente. A memória que ele tem dos jogos de que participou também muda. Hoje, o papel que ele desempenhou no passado talvez lhe pareça mais importante do que nunca. A ponto de achar que sem sua ajuda os uruguaios não têm chances de vencer…" é uma ótima reflexão sobre a questão do tempo e da narrativa, suas causas e efeitos, principalmente.
    No meu diálogo também usei o argumento da duração do jogo como fator importante no entendimento do evento em si.
    E, para finalizar, Ricoeur iria adorar ler as narrativas de revistas e jornais após o jogo, como sugerido no parágrafo final!
    Ótimo texto.

    Talita Damaceno Rodrigues, 6584733

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  2. Texto bem articulado, fundamentado e embasado em relação aos conceitos do autor. Acho que não precisava de uma introdução tão extensa, poderia ter entrado direto no diálogo. Concordo com a Talita sobre a frase acima, realmente, muito inspiradora para pensarmos nos temas do curso.Mas em relação aos comentadores de futebol, que também foi referência no texto da Talita, não acredito que sirvam de narrativas interessantes para Ricoeur, pois como bem disse Alexandre em seu texto, no mundo dos comentadores especialistas de futebol têm crescido cada vez mais a pretensão a serem "científicos", perdendo um pouco da graça do futebol, onde qualquer um pode comentar o que quiser, sem ser "especialista".Acredito que para Ricoeur a partida em si já seria o suficiente para uma interpretação baseada nas suas concepções de História, nas quais a narrativa tem grande papel.
    Obs- "Taís- História" é a estagiária!

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Cara Taís,

      Apenas agora li o seu comentário... Peço, portanto, desculpas pelo atraso na resposta. Agradeço pelas suas palavras tão estimulantes, e em particular pela paciência em ler meu texto relativamente extenso.

      Quanto à minha introdução, creio que seja absolutamente necessária, pois cumpre uma função específica em relação ao conjunto do texto. Primeiramente, exerce um papel importante no tocante aos aspectos propriamente literários, ao fornecer descrições importantes do contexto das falas. Ou seja, ao auxiliar na composição da narrativa. Em segundo lugar, se você atentar para a intencionalidade das situações narradas, notará facilmente que não são aleatórias, meramente "decorativas". Ao contrário, todas versam sobre a vivência efetiva do tempo (expressa, por exemplo, nas referências pontuais aos horários) e sobre a mutiplicidade da percepção humana do tempo, temas fundamentais em Ricoeur.

      Por outro lado, a referência aos comentaristas foi uma tentativa - não saberia dizer se bem-sucedida! - de contemplar a problemática do círculo hermenêutico de Ricoeur, marcado pelas mimeses I, II e III. Ou seja, o jogo de futebol enquanto vivência a partir da qual se constroem as narrativas (não apenas dos comentaristas ditos "profissionais", já que todo espectador é um comentarista - ainda que isso escape ao circuito midiático), que por sua vez voltam-se para o jogo, a fim de interferir nas vivências em campo.

      Mais uma vez, agradeço-te pela dedicação, não apenas no tocante a este trabalho, mas ao curso como um todo! Abraços e boas festas!

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