Ricoeur: Veja, Furet,
como estão cheias as arquibancadas!
Furet: Pois é,
Ricoeur, veja onde fomos nos meter! Numa final de Copa do Mundo! E não uma final
qualquer, mas sim uma entre dois grandes do futebol mundial — e ainda por cima
uma da qual a nossa França nem está participando!
Ricoeur: Com efeito,
Furet, a situação beira o absurdo... tanto mais pelo fato de que, em 2014, eu e
você já devíamos estar mortos...
Furet: Sabe o que me
deixa surpreso, Ricoeur? Nestas plagas o futebol quase adquire o status de uma
religião civil... há templos, sacerdotes, rituais... até divindades próprias! Você
não acha isso intrigante, Ricoeur?
Ricoeur: Ah, sim... não
que na França tais manifestações não existam de todo; lá, elas só não são o
credo predominante...
Furet: Certamente.
Ricoeur: Diga-me,
Furet... você acha que o futebol também pertence à História? Isto é, deve o
historiador se voltar para manifestações tão restritas no tempo e no espaço? Será
que a compreensão destes fenômenos coletivos não estaria ao alcance somente da
psicologia social? É o tipo da coisa que um Halbwachs deveria fazer, não um
Braudel...
Furet: Eh, veja,
Ricoeur, acho que todos os fenômenos que dizem respeito ao homem são dignos da
atenção do historiador.
Ricoeur: Hum, de
acordo, Furet, de acordo... mas, então, que tipo de conhecimento sobre as
sociedades humanas o historiador pode abstrair de uma partida de futebol como
esta? E como ele deve proceder diante dos dados?
Furet: Trinta anos já
se passaram desde que escrevi aquele meu livro lá, A oficina do historiador, mas juro que não consigo abandonar a
ideia de que a história serial se afigura como um dos horizontes mais promissores
para a atividade do historiador...
Ricoeur: Hum... você
gosta mesmo de falar de história demográfica, hein?
Furet: Sem dúvida,
Ricoeur, sem dúvida!
Ricoeur: E você acha
que esses dados são passíveis de tratamento estatístico?
Furet: Bem, somente
aqueles dados que puderem ser quantificados e reunidos em conjuntos de séries
relativamente homogêneas, comparáveis entre si.
Ricoeur: E o que esses
dados podem nos dizer sobre uma sociedade humana, Furet?
Furet: Não sei,
Ricoeur. Um antropólogo ficaria perplexo diante deste espetáculo que nós temos
à nossa frente: dependendo do repertório teórico dele, ele iria querer saber
qual a função do futebol — ou de qualquer outra prática esportiva — nessa
sociedade, o que elas significam para os participantes... já um estudioso da
história econômica iria querer analisar o impacto da Copa do Mundo na economia local
e, quem sabe, comparar os resultados aos dados obtidos de outras copas do mundo
de anos anteriores...
Ricoeur: Curioso...
Furet: Algum
historiador social poderia tentar identificar quais grupos sociais têm uma
ligação mais visceral com o futebol, ou então se há alguma correlação entre o
crescimento econômico de uma região e o número de pessoas que vão assistir às
partidas nos estádios...
Ricoeur: De fato, de
fato...
Furet: E, é claro,
para além da história serial, ainda é possível tentar entender estas
manifestações coletivas sob o prisma das identidades sociais, quem sabe até
compará-las ao nacionalismo ou aos cultos populares, como você mesmo falou. Pode
ser até que algum especialista em estética já tenha tentado elaborar uma teoria
estética do futebol e você nem esteja sabendo... mas aí, eu confesso, já não é
mais a minha praia, Ricoeur. Eu entendo mesmo é de Revolução Francesa.
Nesse texto, Ricoeur acabou ficando sem fala! Trabalhou bem as ideias de Furet, mas poderia ter desenvolvido mais a questão da narrativa.
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