segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Um diálogo ocasional


Ao chegar ao Aeroporto Charles de Gaulle, 1 hora antes do horário de embarque do avião, um homem descobre que o seu voo foi cancelado e que a companhia aérea o transferiu para outro voo, que partiria em 15 minutos.

– Atenção passageiros do voo AF443 com destino ao Brasil, embarque no portão 3.
– Senhor! Senhor! – gritava a atendente do balcão para o homem. Esse é o seu voo.

O homem sem saber se estava furioso ou feliz, aliás, iria chegar mais cedo e sentaria em um lugar melhor, apressou-se para não perder o voo.

– Passaporte e passagem, por favor? – disse a aeromoça que usava uma maquiagem tão carregada que nem dava para distinguir sua idade, talvez uns 25 ou 30 anos.
– Ricouer! Ricouer! – chamava um passageiro lá no fundo.
– Furet? O que faz aqui?
– Darei uma palestra no Rio de Janeiro e você?
– Ah, fui convidado para um simpósio sobre Teoria literária.
– Sente-se aqui – disse Furet.
– Creio que esse não seja meu lugar, mas se alguém chegar eu levanto.
–Sejam bem vindos a bordo. Pedimos a sua atenção para demonstração do nosso equipamento de emergência. – disse a aeromoça.

Após a decolagem, a mulher com a maquiagem carregada oferece uma bebida e algo para comer para os dois senhores.

– Vou querer só um chá e um saquinho de pistache. Aliás, qual o filme que vai passar? – disse Furet.

Enquanto falava, Ricouer retirou da mala de mão um pequeno travesseiro.

– É um transtorno isso de viajarmos tanto tempo sentados. Desculpe, acabei não ouvindo, qual é o filme? – perguntou Ricouer.
– Mr. Nobody. – respondeu Furet com um ar aborrecido. Poderia passar o último do Almodóvar, Os amantes passageiros, divertidíssimo. Só espero que a ficção não vire realidade e aconteça o mesmo com a gente.
– Nunca vi, mas adoro Mr. Nobody. E é incrível como o diretor problematiza a questão do tempo e as memórias do protagonista, de forma a intrigar o espectador sobre qual teria sido a verdadeira história do Sr. que se intitula como Ninguém. O único ponto fraco é sua longa duração, que acho desnecessária, uma vez que o essencial da trama caberia em um tempo bem menor.
 – É um filme caótico, as lembranças inconstantes e imprecisas, distantes da realidade, mas tem uma fotografia belíssima. Além desse discurso do tudo poderia ser outra coisa, mas sem deixar de ser importante, angustia-me um pouco.
– Para mim a beleza do filme reside na forma como aborda as inúmeras possibilidades da vida, cada qual decorrente de uma escolha, sem que haja necessariamente um caminho lógico entre o início e o fim da história ou uma narrativa linear em busca do verossímil. O que me chama a atenção é a relação entre o tempo vivido e a consciência do protagonista, e a forma como o Nemo velho interfere na configuração da narrativa. – disse Ricouer ajeitando o travesseiro na poltrona.
– De todas as vidas de Nemo, suas memórias nos conduzem a torcer pelo caminho que leva a Anna, não? Seja porque a vida com Anna é apaixonante, sempre com tons vermelhos, enquanto a com Elise é repleta de um azul deprimente, ao passo que a tonalidade amarela da vida com a Jean o torna entediante. Suas lembranças ou fantasias não deixam de ser tendenciosas, e a subjetividade o afeta na hora de reconstruir objetivamente sua história.
– Ah... Mas se pensarmos em uma lógica das possibilidades narrativas, não há conflito entre a análise objetiva e a apropriação do sentido pelos sujeitos. Na verdade, Nemo vive enredado em histórias e procura conhecer-se e dar-se a conhecer através delas. Aliás, o trem é a melhor metáfora para as reconstruções de suas vidas, pois nos deparamos com um quadro repleto de caminhos alternativos que se cruzam em linhas paralelas, onde cada escolha modifica o futuro, passando consecutivamente entre futuros alternativos.
– Vendo por esse lado, parece que a intensidade das fantasias vividas é mais relevante do que os fatos reais no filme. Acho que o problema é aquilo que Nemo quis guardar e por que ele quis guardar essas memórias e não outras? É um bom ponto de partida.
– Compreender essas ações não se limita à capacidade de nos transferirmos para o vivido de Nemo com base nos signos que ele oferece à nossa compreensão. O que há de se compreender em uma narrativa é o tipo de mundo que o filme apresenta ao espectador, aliás, estamos falando de cinema e toda sua liberdade criativa.
– Um mundo da criação, do recurso à imaginação? E a imaginação não está pautada pela realidade, mas sim pela referência metafórica da ficção?

Furet levanta a sobrancelha direita, ajeita-se na poltrona e ouve atenciosamente as observações de Ricouer.

– Claro! Mas, isto não invalida que a ficção não almeje também a verdade, apenas se trata de outro tipo de verdade. A estrutura da narrativa visa indiretamente a nossa experiência temporal, enquanto a da história é direta.
– Uma conciliação entre ciência-verdade com a narrativa-ficção? Meu caro amigo, até concordo que a história é uma arte narrativa, mas acho que você pretende conciliar o que é aparentemente inconciliável. – disse Furet inquieto.
– Mesmo que queiramos afastar a história o mais possível da “narrativa”, nunca conseguiremos de todo, pois você como um bom historiador se utiliza da imaginação para vencer a distância temporal, o que lhe permite transportar-se para outro tempo que é o passado.

Furet ficou pensativo por alguns minutos, queria escolher os melhores argumentos para responder, mas acabou por fugir do assunto. Talvez quisesse guardar aquela conversa para outra hora.

– Você sempre acaba desvirtuando as conversas para suas provocações filosóficas.
– Veja pelo lado bom, se estivéssemos em uma narrativa escrita, o leitor não poderia ver essa sua camisa horrorosa. O que é isso? Um canarinho?

Furet inconformado com a observação de Ricouer olhou para o assento ao lado e perguntou para uma senhora se sua camiseta era bonita.

– É comigo? – disse ela rindo. A senhora constrangida balança a cabeça com um sinal negativo.
– Como assim? Não é um país tropical? E essa sua camisa azul celeste? – aponta para Ricouer. Mas tenho que confessar algo. Na verdade estou indo para o Brasil...
Ricouer, que estava com um olhar distraído, inclinou-se para o lado e levantou os olhos em direção a Furet.
– Por quê? – perguntou-lhe.
– Sou fanático por futebol, comprei um ingresso para o final da copa entre o Brasil e o Uruguai no Maracanã.

Ficaram calados por um tempo. Furet estranhou a indiferença do amigo ao contar-lhe o verdadeiro motivo de sua viagem. Ricouer, um pouco inquieto e pensativo, estava confuso se contava que iria ao Maracanã ou não.

– É, meu caro amigo, compartilhamos da mesma paixão, também irei para esse jogo. Será um evento extraordinário, não? – disse Ricouer um pouco constrangido.
– Sério? – disse Furet com um rosto surpreso. Onde você vai sentar?
– Setor 112, assento 09. E o seu?
– Setor 112, assento 10. – disse sorrindo.
– Atenção senhores passageiros dentro de instantes estaremos pousando no Aeroporto Internacional do Galeão.- ressoou uma voz pelo alto-falante.

Sem saber direito como a conversa tinha chegado naquele ponto, os dois tiveram a sensação de que o tempo da viagem tinha sido curto, e que as questões não tinham sido respondidas, mas ganharam uma prorrogação.


– Quem será que vai marcar o gol de ouro? – disse um rapaz que ouvia toda a conversa do assento de trás.

Rayane Silva N° USP 7742946

Um comentário:

  1. Bom texto, ideia convincente de diálogo entre os dois sobre o filme. Ricoeur valorizando a narrativa não-linear e cheia de significados e possibilidades de Nemo e Furet com certo receio em relação ao caráter subjetivo de Nemo e ficcional do filme. Abordou bem o tema!

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