segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Seriam ironias do destino, não fossem ironias da narrativa...

Maracanã mais que lotado, final da copa do mundo de 2014.É a grande final, Brasil e Uruguai sob um calor escaldante.Na arquibancada, François Furet e Paul Ricoeur assistem ao jogo. Furet com as mãos carregadas de papéis, um esboço do esquema tático das duas equipes, papéis com a escalação dos times e um álbum de figurinhas.Ricoeur incomodado por não conseguir amarrar os sapatos por conta do aperto no estádio.
Já passaram-se 15 minutos e a seleção brasileira pressiona e empolga os torcedores com uma pressão constante no campo adversário.Furet, rabisca em seu caderninho de anotações e resmunga:

F: - Mas que coisa estranha, o Uruguai não consegue manter sua formação defensiva, por isso está passando esse sufoco todo. Geralmente são bem posicionados na marcação, mas hoje estão estranhamente relapsos quanto a isso, o que será que está acontecendo?
R:- Suponho que em uma final como essa, na casa do adversário, o sufoco não é algo a se estranhar !
F: Mesmo quando joga fora de casa, o time uruguaio, na maioria das vezes mantém-se concentrado e marcando forte.Será que isso está relacionado ao desgaste mental devido ao assédio por parte da mídia durante essa semana?
R: Relaxe,Meu caro. Se for isso ou outra coisa, só vamos saber depois, agora vamos ver no que isso vai dar...
F: Isso nunca deu em nada... nunca vi o  Uruguai sendo tão paparicado como nessa semana, nem mesmo na copa de 50 foi assim...
R: Nem se compara, os tempos são outros, hoje a mídia está bem mais em cima e a pressão sobre os jogadores é maior, eles se preocupam muito com a imagem que passam ao mundo.E dentro de campo a imagem também conta, uma vez que...
F: Olha lá ! Agora o bicho vai pegar !
Quando o time uruguaio parte num contra-ataque empolgante, um torcedor com uma bandeira do Brasil entra na frente de Ricoeur, encobrindo a visão do campo.Ele se estica para tentar ver, mas só é possível enxergar as arquibancadas do outro lado do estádio:
R: "Sacré bleu" ! logo agora que eu estava me empolgando com o jogo !
F: Agora sim ! um contra-ataque de manual !
  Os gritos eufóricos de ambas as torcidas ecoam cada vez mais altos pelo estádio...
R: O que está acontecendo Furet? Não consigo ver nada !
F: Simplesmente um prenuncio de gol... Um contra ataque perfeito!
R: Sim, disso eu já sei ! mas me conte o desenrolar dos fatos.
F: Ora, os fatos são esses: o Uruguai parte para o ataque pelo meio com os dois laterais abertos, em velocidade e com um volume de jogo considerável...encontrando a defesa brasileira postada em zona, porém desfalcada de um de seus zagueiros!
R: Sim, mas e daí? Quem está com a bola ? vai me falando quem está carregando a jogada...
F: Não lhe disse que é um contra-ataque de manual? Tem tudo pra dar em gol ! quem está com a bola agora é Ramirez, que fez um passe para Hernandez aberto pela lateral direita e que fatalmente irá até a intermediária para buscar Cavani em melhor condição de gol!
R: Tudo bem, mas não tire conclusões precipitadas, o lance ainda não foi concluído...
F: tecnicamente já está, essa é a jogada mais manjada do futebol moderno, é assim que jogam os times com maior eficácia nas finalizações !
   Furet já se preparava para gritar gol, quando o estádio todo se inflama em vaias e risos...
R: O que houve ?
F: Lamentavél...não acredito !
R: O que aconteceu ?
F: Hernandez escorregou e deixou a bola de graça para o zagueiro !
Ricouer gargalha enquanto apoia-se  no ombro do amigo para tentar ver o lance, e exclama:
R: Prenuncio de gol ? creio que isso não estava no manual, hã ?
F: Deixe de gozação, isso só pode ter acontecido porque Hernandez não se dedica aos treinamentos e está com a parte física comprometida !
R: Seja lá o que for, deve ter sido engraçado !
F:Mas até agora não entendi o que está acontecendo com o Uruguai, será que é o calor que está afetando o desempenho dos jogadores? Hernandez não costuma vacilar assim !
R: Essas coisas acontecem, meu caro.Provavelmente você levará em conta esse vacilo na próxima vez em que ele tiver que decidir uma jogada. Hahaha
F:Talvez, se isso se tornar tão frequente a ponto de influenciar em uma análise do modo de jogar da equipe...Mas só esse escorregão não é o suficiente pra alterar a história da partida.
R: Não seja chato. Estava apenas brincando!

Furet coça a cabeça, enquanto encara a foto de Hernandez em seu álbum de figurinhas da Copa 2014. Ricoeur ainda tenta se esquivar da enorme bandeira verde-amarela a sua frente quando ouve-se um entrosado grito de “UUUUUHHH” no estádio:

R: E agora? O que houve ?
F: Não sei, não estava prestando atenção no jogo, estou aqui tentando entender por que os jogadores do Uruguai estão tão desconcentrados...
R: Deixe disso, meu caro. Preste atenção ai e me fale, estamos perdendo momentos importantes do jogo.
F: Não se preocupe, seja lá o que for, não influenciou em nada... os jogadores continuam em suas posições e é apenas um arremesso lateral para o Brasil.
R: Com você de narrador já estou ficando entediado !
F: Não estou narrando nada, não perderia meu tempo falando pra você o que cada jogador está fazendo. Isso sim seria tedioso... Ficaria aqui falando o que eu, enquanto um apreciador do futebol tático estou vendo...isso seria insuficiente para que você entendesse o jogo como um todo. Estou analisando o que está acontecendo pra te dar uma melhor compreensão da partida...
R: Me dar uma compreensão da partida, seja ela melhor ou pior, é a forma que você encontra para narrar o que vê, não deixa de ser uma narrativa, só muda o modo como narra...
F: Não comece com essa ladainha! Lá vai você me provocar novamente dizendo que eu faço a mesma coisa que aqueles contadores de história fazem, mas só mudo o foco!
R: Hahahah...Pois então, faça-me compreender a partida de uma maneira mais interessante...
 
Enquanto Furet tentava retrucar às provocações de Ricoeur, o estádio se enche de euforia e ouvem-se gritos, xingamentos e vaias:
R: E agora? O que aconteceu?

Quanto Furet estava prestes a responder, o torcedor com a bandeira encontra espaço na arquibancada e se posiciona bem a frente dele, encobrindo sua visão do campo.

F: Só me faltava essa! Agora não vejo o jogo !
R: É uma falta na entrada a área uruguaia !
F: Não acredito que vou perder isso!
R: Se você não tivesse ojeriza à tal palavra “narrar”, eu poderia ir te contando o que acontece...
F: Não tenho ojeriza à palavra “narrar”, mas sim ao que ela representa... Mas vá lá, pode narrar o jogo pra mim agora, vamos ver no que dá!
R: Bom, há exatos 28 minutos o árbitro apitou o início da partida, a bola rolava para mais uma final de Copa do Mundo de Futebol!
F:Não me provoque, Paul!... Me fale como está  o posicionamento dentro da área...
R: Nossa, está uma confusão, tá o time brasileiro todo dentro da área...hahaha
F: Como assim? Isso é impossível e improvável, não cometeriam um erro tão banal assim de deixar o campo de defesa sem nenhum jogador!
R: Hahaha, não seja tolo! É só um modo de dizer.Não é a toa que não entra em sua cabeça que narrativa não é só contar história,sequer entende um sentido figurado.Seja menos caxias, é um jogo de futebol!O Felipão mandou os zagueiros pra área, mas manteve a retaguarda protegida pelo Luiz Gustavo.
F: Pois é, isso de achar sentido figurado em tudo, até na História não é comigo não!  Menos mal, mas ainda assim é uma má ideia...o David Luiz e o Thiago Silva não têm bom aproveitamento na bola aérea !Pela escalação do time, o  que pode salvar aí é que o Jô está lá, e pelos números há grandes chances de que ele faça esse gol....

    Nesse momento, o juiz apita...e o clima de tensão no estádio é quebrado por gritos eufóricos da torcida brasileira! Ricoeur olha para o lado e vê Furet  com um ar de satisfação no rosto esboçando um sorrisinho no canto da boca:

R: Então, meu caro. Não vai perguntar o que houve?
F: E precisa? Acabei de lhe apresentar o panorama do lance... Não precisa nem me contar que foi gol do Brasil !
R: Hahahaha! Poxa, Furet! Acho que hoje não é um bom dia pros seus números...
F: Por que?
R: Porque não foi gol do Brasil, Neymar cobrou a falta com precisão mas Lugano colocou a mão na bola para impedir o que seria um golaço. Acabou levando um cartão vermelho.
F: Não creio! O que está acontecendo com esses uruguaios? Estão ficando malucos?
R: Hhahaha, não sei. Só sei que estou indo embora, te vejo mais tarde no bar...
F: Como assim? Não vai ficar para ver o resto do jogo?
R: Para mim o jogo termina aqui, na verdade só vim porque sou um grande fã do futebol do Lugano, e esse cartão vermelho, para mim, é o ponto final!


Mateus Rosalvo de Oliveira Silva  NºUSP: 7199714

Recomendo o filme "Narradores de Jave". Há completo no Youtube, mas deixo essa cena para quem se interessar :










Um comentário:

  1. Bom texto, conseguiu estabelecer o confronto entre os dois não por um diálogo conceitual puramente teórico, mas pela criação fictícia mesma do texto, na prática, no modo dos dois em interpretar o futebol, ou seja, cumpriu o desafio a risca. Gostei!

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