segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Papo de amigos.

          O ambiente estava mais agitado que o de costume. Ainda que estivessem lá os frequentadores de sempre - alunos que conversavam e perambulavam pelos corredores, outros que debatiam sobre o status atual da universidade, enquanto nos cantos alguns fumavam discretamente seus... cigarros - o prédio de História e Geografia ficava cada vez mais movimentado em virtude de um simpósio organizado pelo professor Osvaldo Coggiola. O tema daquele ano era “História e Teoria” e vários doutores da área foram convidados a participar das mesas. Mesmo aqueles que pertenciam a outros departamentos estavam presentes para acompanhar as discussões.
            Como esses grandes eventos acontecem de tempos em tempos, muitos participantes aproveitavam a ocasião para reencontrar velhos conhecidos. E lá estavam François Furet, Aristóteles, Paul Ricouer, Agostinho (apelidado de O Santo, entre os mais íntimos) e Nietzche, além Varnhagen que resolveu se juntar ao grupo. Após roubar um cafezinho e alguns quitutes do coquetel oferecido aos professores, se reuniram nos bancos de madeira do vão do prédio para conversar um pouco. Falavam sobre assuntos aleatórios. Como não tinham contato direto entre si, que não fosse em eventos como esse ou em debates pelo facebook, havia certos momentos em um silêncio constrangedor surgia devido a falta de assunto. Em certa hora, para romper com este silêncio Varnhagen comenta:

__ Viram a final de ontem?
__ Nem vi, estava completamente concentrado em meus próprios pensamentos, responde Aristóteles, mas gostaria de saber como foi. Brasil e Uruguai certo?
__ Também não vi o jogo, disse Nietzche.
__ Não perdi um minuto e posso contar como foi todo o jogo.
__ Por favor, pediu Nietzche, que não estava muito interessado no assunto, mas não o suficiente para ser deselegante.
Varnhagen fez um descrição minuciosa da partida, descrevendo jogada a jogada, falta a falta, passe a passe, cuidando para que não faltasse nenhum detalhe. Furet, não muito paciente, reprimiu o colega pela forma como ele contava o jogo.
__ Caro colega, todos estamos interessados em falar sobre o jogo, mas ainda que alguns não tenham assistido a partida, o que gostaríamos mesmo era saber do desempenho dos jogadores e os desdobramentos da jogada. Acho que seria mais interessante para discutirmos. Da forma como você esta narrando, me parece que só se importa com o que aconteceu em campo, ignorando os problemas relativos a essa final, além de ser clara a sua posição de defesa a seleção uruguaia como se a seleção brasileira estivesse fadada ao fracasso e francamente isso me incomoda. Cá entre nós, além de extensa a sua descrição me parece bem chata.
__ Estou contando dessa forma porque considero um momento importante para a história da seleção. E do Brasil também, porque não? Sabemos o quanto o futebol é cultuado por uma parcela da população e não vejo nenhum mal nisso.
__ Sim, mas eu tenho outro pensamento como historiador. Você constrói a sua narrativa a partir da escolha de um objeto, um recorte temporal. Veja, eu até concordo que a história é filha da narrativa, mas essa não pode ser a única forma de trata-la.
__ Como assim François? Ricouer parecia bastante interessado no debate, mas não pelo futebol que era um tema que não dominava.
__ Paul a tempos que não nos vemos e não pude compartilhar com você minhas teorias, mas veja bem: não há como encarar a história tomando um problema isolado para justificar a superioridade de um determinado grupo. E nosso colega esta fazendo exatamente isso ao considerar a vitória do Paraguai para afirmar que ele foi o melhor time dessa Copa. Mas não foi. Se pensarmos em todo o desempenho durante todos os jogos vemos que não foi bem assim. Sei que esse é um evento qualquer, talvez sem grande importância, mas não consigo ver a história a partir de um recorte limitado. Tem que ter um significado.
__ Entendo...
__ Aliás, eu publiquei sobre isso recentemente; a passagem da história-narrativa para a história-problema. Você leu?
__ Não, desculpe. Ricouer até parecia constrangido em admitir.
__ Sem problemas, eu te envio um e-book por e-mail.
__ Bom, eu penso que a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal. Com isso eu quero dizer que tempo e narrativa dialogam entre si. A narrativa é também história e é através dela que podemos produzir um significado, a que você tanto reclama. A própria partida se assemelha a elaboração de uma tragédia por conta de sua estrutura narrativa.
__ Não acho que você entenda de tragédia, disse Aristóteles baixinho e não deu mais atenção a conversa.
__ Interessante o seu pensamento. Sabe, outra coisa que penso é que considerar os dados é importante para problematizar a história.
__ Ahhhh, pra puta que pariu você e sua paranoia estatística! O assunto ainda é futebol, não revolução, Afirmou Varnhagen, que procurava uma oportunidade para retrucá-lo.

          O clima ficou tenso. A conversa que começou informal parecia tomar uma proporção maior do que a esperada. Mas quando se trata de futebol os ânimos costumam se alterar, mesmo para quem não é um apaixonado pelo esporte. E quando se trata de Teoria, os ânimos se alteram mais ainda.
__ Amigos, sei que parece tolo, mas diante de algo confuso como essa discussão eu sempre recorro a um método capaz de esclarecer qualquer assunto.
__ Interessante, indaga Furet, e qual seria seu método?
__ Rezar!
Agostinho abaixa a sua cabeça e começa, de forma não muito discreta, uma oração. Nietzche, que até estava indiferente a tudo aquilo, manteve seu ar superior, balançou a cabeça e disse em voz baixa,
__ Tolo.
__ Enfim, disse Ricouer, o que eu queria dizer mais acima é que tempo e narrativa estão relacionados. Como o tempo esta inserido numa perspectiva narrativa o tempo se torna humano. Essa dicotomia se manifesta na escrita, desde quando nós selecionamos nosso material, depois compomos nossa narrativa e por fim permitimos através da leitura retornar a prefiguração do texto.
No futebol, todo acontecimento influencia o resultado final e esta sujeito a um peso histórico. O tempo, para mim corresponde ao período no qual o objeto direto está inserido.

          Uma jovem que se sentava próximo ao grupo se levantou discretamente. Impossível não ouvir àquela discussão. E certamente ela não dormiria bem, pensando e filosofando sobre tudo aquilo que ouvira. Futebol, história, teoria, quem discute sobre isso? Eram questionamentos demais para terminar uma noite de segunda-feira.
Vivian Batista Cinel - NºUSP: 6839480


2 comentários:

  1. Era segunda-feira demais pra tantos questionamentos !

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  2. Bom texto. Ficou engraçada a situação de colocar numa mesma conversa filósofos de diferentes épocas, porém, a partida de futebol proposta como objeto de reflexão entre Ricoeur e Furet acabou funcionando somente como disparador do diálogo entre eles, sem tanta relação entre acontecimentos do jogo e teoria. Mas demonstrou, num texto de leitura muito agradável, saber esclarecer as diferenças conceituais de ambos. Muito Bom!

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