O ambiente estava mais agitado
que o de costume. Ainda que estivessem lá os frequentadores de sempre - alunos que conversavam
e perambulavam pelos corredores, outros que debatiam sobre o status atual da
universidade, enquanto nos cantos alguns fumavam discretamente seus... cigarros
- o prédio de História e Geografia ficava cada vez mais movimentado em virtude
de um simpósio organizado pelo professor Osvaldo Coggiola. O tema daquele ano
era “História e Teoria” e vários doutores da área foram convidados a participar
das mesas. Mesmo aqueles que pertenciam a outros departamentos estavam
presentes para acompanhar as discussões.
Como
esses grandes eventos acontecem de tempos em tempos, muitos participantes
aproveitavam a ocasião para reencontrar velhos conhecidos. E lá estavam
François Furet, Aristóteles, Paul Ricouer, Agostinho (apelidado de O Santo,
entre os mais íntimos) e Nietzche, além Varnhagen que resolveu se juntar ao
grupo. Após roubar um cafezinho e alguns quitutes do coquetel oferecido aos
professores, se reuniram nos bancos de madeira do vão do prédio para conversar
um pouco. Falavam sobre assuntos aleatórios. Como não tinham contato direto
entre si, que não fosse em eventos como esse ou em debates pelo facebook, havia
certos momentos em um silêncio constrangedor surgia devido a falta de assunto.
Em certa hora, para romper com este silêncio Varnhagen comenta:
__ Viram a final de ontem?
__ Nem vi, estava completamente
concentrado em meus próprios pensamentos, responde Aristóteles, mas gostaria de
saber como foi. Brasil e Uruguai certo?
__ Também não vi o jogo, disse
Nietzche.
__ Não perdi um minuto e posso
contar como foi todo o jogo.
__ Por favor, pediu Nietzche, que
não estava muito interessado no assunto, mas não o suficiente para ser
deselegante.
Varnhagen fez um
descrição minuciosa da partida, descrevendo jogada a jogada, falta a falta, passe
a passe, cuidando para que não faltasse nenhum detalhe. Furet, não muito
paciente, reprimiu o colega pela forma como ele contava o jogo.
__ Caro colega, todos estamos
interessados em falar sobre o jogo, mas ainda que alguns não tenham assistido a
partida, o que gostaríamos mesmo era saber do desempenho dos jogadores e os
desdobramentos da jogada. Acho que seria mais interessante para discutirmos. Da
forma como você esta narrando, me parece que só se importa com o que aconteceu em
campo, ignorando os problemas relativos a essa final, além de ser clara a sua
posição de defesa a seleção uruguaia como se a seleção brasileira estivesse
fadada ao fracasso e francamente isso me incomoda. Cá entre nós, além de
extensa a sua descrição me parece bem chata.
__ Estou contando dessa forma
porque considero um momento importante para a história da seleção. E do Brasil
também, porque não? Sabemos o quanto o futebol é cultuado por uma parcela da
população e não vejo nenhum mal nisso.
__ Sim, mas eu tenho outro
pensamento como historiador. Você constrói a sua narrativa a partir da escolha
de um objeto, um recorte temporal. Veja, eu até concordo que a história é filha
da narrativa, mas essa não pode ser a única forma de trata-la.
__ Como assim François? Ricouer
parecia bastante interessado no debate, mas não pelo futebol que era um tema
que não dominava.
__ Paul a tempos que não nos
vemos e não pude compartilhar com você minhas teorias, mas veja bem: não há
como encarar a história tomando um problema isolado para justificar a
superioridade de um determinado grupo. E nosso colega esta fazendo exatamente
isso ao considerar a vitória do Paraguai para afirmar que ele foi o melhor time
dessa Copa. Mas não foi. Se pensarmos em todo o desempenho durante todos os
jogos vemos que não foi bem assim. Sei que esse é um evento qualquer, talvez
sem grande importância, mas não consigo ver a história a partir de um recorte
limitado. Tem que ter um significado.
__ Entendo...
__ Aliás, eu publiquei sobre isso
recentemente; a passagem da história-narrativa para a história-problema. Você
leu?
__ Não, desculpe. Ricouer até
parecia constrangido em admitir.
__ Sem problemas, eu te envio um
e-book por e-mail.
__ Bom, eu penso que a narrativa é
significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal. Com
isso eu quero dizer que tempo e narrativa dialogam entre si. A narrativa é também
história e é através dela que podemos produzir um significado, a que você tanto
reclama. A própria partida se assemelha a elaboração de uma tragédia por conta de
sua estrutura narrativa.
__ Não acho que você entenda de
tragédia, disse Aristóteles baixinho e não deu mais atenção a conversa.
__ Interessante o seu pensamento.
Sabe, outra coisa que penso é que considerar os dados é importante para problematizar
a história.
__ Ahhhh, pra puta que pariu você
e sua paranoia estatística! O assunto ainda é futebol, não revolução, Afirmou Varnhagen,
que procurava uma oportunidade para retrucá-lo.
O clima ficou tenso. A conversa
que começou informal parecia tomar uma proporção maior do que a esperada. Mas
quando se trata de futebol os ânimos costumam se alterar, mesmo para quem não é
um apaixonado pelo esporte. E quando se trata de Teoria, os ânimos se alteram
mais ainda.
__ Amigos, sei que parece tolo,
mas diante de algo confuso como essa discussão eu sempre recorro a um método
capaz de esclarecer qualquer assunto.
__ Interessante, indaga Furet, e qual
seria seu método?
__ Rezar!
Agostinho abaixa a sua
cabeça e começa, de forma não muito discreta, uma oração. Nietzche, que até estava
indiferente a tudo aquilo, manteve seu ar superior, balançou a cabeça e disse
em voz baixa,
__ Tolo.
__ Enfim, disse Ricouer, o que eu queria dizer
mais acima é que tempo e narrativa estão relacionados. Como o tempo esta
inserido numa perspectiva narrativa o tempo se torna humano. Essa dicotomia se
manifesta na escrita, desde quando nós selecionamos nosso material, depois
compomos nossa narrativa e por fim permitimos através da leitura retornar a prefiguração
do texto.
No futebol, todo acontecimento
influencia o resultado final e esta sujeito a um peso histórico. O tempo, para
mim corresponde ao período no qual o objeto direto está inserido.
Uma jovem que se sentava próximo
ao grupo se levantou discretamente. Impossível não ouvir àquela discussão. E certamente
ela não dormiria bem, pensando e filosofando sobre tudo aquilo que ouvira. Futebol,
história, teoria, quem discute sobre isso? Eram questionamentos demais para
terminar uma noite de segunda-feira.
Vivian Batista Cinel - NºUSP:
6839480
Era segunda-feira demais pra tantos questionamentos !
ResponderExcluirBom texto. Ficou engraçada a situação de colocar numa mesma conversa filósofos de diferentes épocas, porém, a partida de futebol proposta como objeto de reflexão entre Ricoeur e Furet acabou funcionando somente como disparador do diálogo entre eles, sem tanta relação entre acontecimentos do jogo e teoria. Mas demonstrou, num texto de leitura muito agradável, saber esclarecer as diferenças conceituais de ambos. Muito Bom!
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