Mr. Nobody à luz de F. Furet e P. Ricoeur
Quem
de nós nunca parou um instante que fosse de nossas vidas e se fez a seguinte
questão: o que eu seria se não fosse aquilo que sou hoje? Esse tipo de pergunta
nos passa pela cabeça muitas vezes em momentos em que gostaríamos de estar em
outro lugar, ou de ser uma outra pessoa. Mas também, essa pergunta nos passa
pela mente por mera curiosidade de saber o que teria acontecido conosco caso
tivéssemos tomado uma outra decisão num determinado momento do passado, e que
conseqüências essa decisão teria gerado, e com isso, teria influenciando o
nosso presente. O que seríamos então?
Essa dúvida é o tema do filme
intitulado Mr. Nobody. Nele a narrativa se dá em torno das múltiplas possibilidades
de destino que o protagonista poderia ter vivenciado caso tivesse tomado uma
decisão diferente em diversos momentos de sua vida. Nesse filme o protagonista
vivencia vários destinos que são conseqüências de uma escolha principal: após o
divórcio de seus pais, com qual dos dois ele passará a viver? Dessa forma,
assim como os múltiplos caminhos que podemos trilhar em nossas vidas, o filme
explora justamente esses diferentes destinos e essas diferentes escolhas, o que
leva em determinado momento o protagonista dizer: “não podemos retornar, por
isso é difícil escolher. Tem que fazer a escolha certa. Enquanto não se
escolhe, tudo continua a ser possível”.
A narrativa do filme não é contada
de forma cronológica. O começo, o meio, e o fim da história do protagonista não
são narrados nessa ordem. Isso não prejudica o entendimento no enredo, muito
pelo contrário, é possível entender a narrativa e é algo que torna o filme mais
interessante. Esse tipo de narrativa da
história é algo explorado por P. Ricoeur. Segundo ele, narrar uma história significa
passar por vários eventos até chegar ao fim. Mas o que seria esse fim? Esse fim
é justamente a totalidade da narrativa. O fim não é necessariamente o fim
cronológico, mas sim, o fim é aquilo que dá totalidade, coerência e unidade à
narrativa. Ou seja, não há problema se contarmos uma história de forma
cronológica - como é feita por historiadores como F. Furet - ou se a contarmos
começando pelo final e voltando para começo e terminando-a no meio. Isso
realmente não importa. O que de fato é importante é que o “final” dê a
totalidade e coerência à narrativa e a torne assim inteligível.
Em
determinada parte do filme Nemo diz: “eu sou o Mr. Nobody, um homem que não
existe”. Por que será que ele diz que não existe? Uma possível explicação é porque
ele não tem uma memória única e exata. Se pensarmos assim, não ter uma memória
certa é o mesmo que não existir, porque a existência estaria diretamente
relacionada à capacidade de poder rememorar os seus acontecimentos passados. Ou
seja, se ele não consegue se lembrar dos acontecimentos que de fato aconteceram,
logo eles não existiram, se eles não existiram logo ele também não existe. Esse
tipo de ralação entre a memória e a existência é encontrado na História, pois
nela muitos dos acontecimentos passados são tidos como não existentes
justamente que não são lembrados, e eles não são lembrados porque não são tidos
como fatos históricos.
Na
História existem infinitos acontecimentos que podem ser considerados fatos
históricos, assim como no próprio filme. Se considerarmos um fato histórico por
conta dos seus efeitos, um fato histórico presente na história de Nemo seria o
momento em que ele decide com quem irá ficar: seu pai? Sua mãe? Ou nenhum dos
dois? Para F. Furet, os fatos históricos
não são aqueles que são considerados extraordinários. Para ele os fatos
históricos são aqueles que se repetem e que há a possibilidade do
estabelecimento de uma série. Para esse tipo de história-problema a história
quantitativa vem a ser um instrumento de auxilio para a verificação das
hipóteses que podem ser colocadas sobre esses fatos.
Como
foi dito anteriormente, existem infinitos acontecimentos no passado que não são
lembrados e por esse motivos são tidos por inexistentes, mas que passado é
esse? Se levarmos em consideração as reflexões de Agostinho entenderemos que o
tempo não possui três dimensões: passado, presente e futuro, mas apenas uma: o
presente o qual se desdobra em outros, nesse caso, o presente do passado. Sendo
assim, de acordo com Agostinho, o presente do passado é uma dimensão do tempo
presente que faz referência no passado, e isso se dá por intermédio da memória.
Pensando
nessas questões podemos dizer que os acontecimentos do passado são como
lâmpadas que se apagaram. Enquanto elas estavam acesas elas exerciam uma atividade,
elas agiam e atuavam naquele presente. Porém, enquanto não houver alguém que as
rememore, que as relembre, elas permanecerão apagadas, no escuro do
esquecimento. Esse é justamente o papel do historiador, é rememorar
acontecimentos do passado, é tirá-los da escuridão do esquecimento, é
reacendê-los e trazê-los para a luz da memória. Não rememorá-los não significa
dizer portanto que eles não existiram, significa dizer somente que eles ainda
não adquiriram uma importância presente que os referencie no passado e se
tornem memória histórica. Logo, o fato
de Nemo não possuir uma memória exata de seu passado, não significa dizer que
ele não existiu, significa dizer que ele permanece como que um acontecimento
passado esquecido, que ainda não teve a chance de se tornar um fato histórico e
ser trazido à luz da memória.
Portanto
narrar uma história nos remete a resgatar acontecimentos passados por meio de
uma memória. É olhar para o passado e enxergar nele quais acontecimentos serão narrados.
Não importa a ordem em que eles serão relatados, desde que no final essa
narrativa se torne coerente e inteligível. Afinal, como diz Nemo:
“Você sabe o que dizem, no final tudo se encaixa”.
Vinícius
Marangon nº USP 6837752 – Noturno.
O texto chama atenção para questões importantes sobre a memória e a relação entre passado e presente, fundamentais para a historiografia. Eu acrescentaria o fato do filme oferecer elementos que apontam também para a relação entre imaginação e memória, uma vez que muitas das lembranças do Nemo velho (inclusive o próprio) eram projeções construídas pelo Nemo criança dividido entre o pai e mãe, e não recordações de um passado "concreto".
ResponderExcluirÓtimo texto sobre o filme, conseguiu relacionar bem com Ricoeur e Furet, ao mesmo tempo que os diferenciou e que fez uma relação original com o fazer histórico. Concordo com a Mariana que o passado "concreto" não seria possível de acessar tal qual no exemplo da lâmpada que se apaga e que volta a se acender com a memória, visto que história e memória são entrelaçadas, porém não são a mesma coisa. A relação entre existência-memória-fato histórico foi bem traçada, nos levando a reflexões sobre nosso ofício.
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