segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Mr Nobody, Furet e Ricoeur

Podemos começar a pensar o filme Mr Nobody a partir de três temáticas principais, que se entrelaçam: a das escolhas, a da narrativa e a do tempo. Todo o enredo se baseia nas possíveis escolhas de Nemo, que já velho narra as diferentes vidas que poderia ter levado, baseado na escolha inicial - partir com a mãe ou ficar com o pai. Esse narrador também é uma projeção imaginária, assim como todas as memórias que são narradas. O verdadeiro foco da história é o Nemo de 9 anos, preso na dificuldade de sua primeira grande escolha.
As escolhas moldam os diferentes cenários que são apresentados: a vida, o caráter, a profissão, tudo muda em função do que é escolhido. Nemo conta que, antes mesmo de nascer, escolheu seus pais. Isso remete a Sartre e sua defesa do existencialismo, das escolhas como modeladoras da vida humana.
As escolhas são sempre momentos importantes em períodos distintos na vida do personagem. Embora os períodos se confundam, se houver um isolamento de cada "história", vemos que elas se dão a partir de momentos de ruptura, causados pelas escolhas feitas. Além disso, o sentido só se dá quando no fim, em que a totalidade organiza o "mosaico" dos acontecimentos. Desse modo, vê-se no filme a definição de história-narrativa de François Furet e a questão do sentido da narrativa em sua totalidade, colocada também por Paul Ricoeur.
A história-narrativa, pode-se argumentar, possui um período de tempo delimitado, ao passo em que o filme alterna temporalidades. Porém, em cada cenário, há a delimitação temporal: do momento em que o menino escolhe ir com a mãe ou ficar com o pai até a sua morte. Esta se dá diferentemente em cada uma das possibilidades que se apresentam, o que reporta à inevitabilidade e imprevisibilidade da morte, abordada por Heidegger e retomada por Ricoeur.
A temática temporal é abordada diretamente por Nemo, em uma de suas existências: ele nos fala sobre o sentido do tempo, sua marcha adiante, o fato de não retroceder, a impossibilidade de mudar o que já passou. Nesse ponto, temos convergências e divergências com a visão agostiniana que Ricoeur apresenta. A dificuldade em definir o tempo, em medi-lo, o fato de que é impossível mudar o que passou e a infinidade possibilidades que se abre enquanto a escolha não é feita, são os pontos em comum com a teoria de Agostinho. O que difere é a questão do movimento temporal.
O tempo no filme tem seu movimento ligado diretamente ao movimento espacial, dos astros – o início do tempo se dá no big bang, cenas espaciais são apresentadas enquanto o personagem discute o fluir do tempo e no fim, quando o tempo retrocede, o movimento dos astros se inverte. Em várias cenas, Nemo tem contato com elementos espaciais, sejam imagens ou decoração, mostrando a relação tempo x espaço que o filme busca tratar. Agostinho, por sua vez, vê o tempo como um movimento da alma, independente do espaço ou dos movimentos astrais: o espírito faz a ligação entre as temporalidades e é a partir dessa ligação que medimos o movimento do tempo.
Além da abordagem direta, vemos a questão temporal na própria articulação do filme, que constitui uma grande mistura entre passado, presente e futuro. A falta de linearidade pode parecer um problema em um primeiro momento, por ser um modelo que nos é estranho. Porém, quase todas as cenas podem ser situadas cronologicamente, a partir de símbolos e atribuições dos personagens - como moda, idade, tecnologias. São esses símbolos que tornam a história não linear inteligível, porque traduzimos as idas e vindas temporais a partir deles. Embora haja a quebra da estrutura narrativa tradicional, empregam-se elementos que a tornam, embora desconfortável, compreensível. Novamente fazemos alusão a Ricoeur, aqui com sua construção mimética da narrativa.
As cenas que mais nos causam estranhamento são aquelas que simplesmente não conseguimos contextualizar, atribuir cronologia. São as cenas padronizadas, em que todos se vestem iguais, tem os mesmo carros e Nemo se vê e conversa com seu “eu” futuro. Nelas, temos a perda de referências total. A existência dessa atemporalidade talvez se dê pela necessidade do personagem se encontrar, ponderar sobre suas escolhas; não é possível saber ao certo. O que podemos depreender dessas cenas é que, independentemente do tipo de narrativa adotada, os acontecimentos só fazem sentido quando contextualizados, referenciados, como defendido tanto por Furet quanto por Ricoeur.

O final do filme, como já dito, dá sentido à totalidade da história. O caos da vida de Nemo, mesmo que imaginário, foi organizado pela narrativa, que tem esse objetivo, como nos apresentam Furet e Ricoeur. A quebra do modelo temporal tradicional não deve ser motivo para que ignoremos o filme como narrativa, deve, ao contrário, nos servir para ampliarmos nossos horizontes sobre o que consideramos como estruturas narrativas, saindo da forma convencional. 

Mayna Venturini da Silva
Nº USP - 7200090

Um comentário:

  1. Bom texto, conseguiu sintetizar as questões relativas aos autores e ao filme, optando mais por aproximar Furet e Ricoeur do que por afastá-los. Interessante!

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