domingo, 6 de outubro de 2013

Marcanã lotado. Final da Copa do Mundo de 2014. Brasil e Uruguai. Pessoas, bandeiras, cores, tudo se confundia na arquibancada formando uma grande massa verde e amarela. No meio da bagunça, dois franceses rabugentos procuravam seus respectivos lugares. Pessoas com coletes laranjas tentavam conter o caos, embora não fossem muito efetivas em sua missão. Enfim, já depois de 10 minutos de jogo, conseguiram sentar.

Ricoeur: Que caos mais exuberante em meu amigo.

Furet: Exuberante? Isso é a figuração do inferno. Não sei como você me convenceu. Mas já que estamos aqui.. diante desse fato histórico..

Ricoeur pensou um pouco..viu o moço do cachorro quente passar, pensou mais um pouco e prosseguiu o diálogo.

Ricouer: O que você quer dizer com fato histórico Furet?

Furet: Esse acontecimento que estamos presenciando é um momento singular no tempo. Não é redutível nem àquilo que houve antes, nem ao que virá depois.

Ricouer: Como você pode ter tanta certeza disso? Ao meu ver, só saberemos que o evento de hoje caracteriza-se como um fato histórico se dito como tal no futuro. Entretanto, pensando melhor, se adotarmos a concepção de tempo em Agostinho, o futuro é uma expectativa presente que, no caso em questão, tem estrita relação com a memória.

Furet: Em outras palavras,o evento de hoje pode ser considerado um fato histórico dada a sua relação com o  jogo de 1950?

Ricouer: Exato.

Furet: Entendo..para mim não deixa de ser diferente. O  jogo de hoje é um fato histórico por toda a carga emocional nele envolvida. Veja. A narrativa histórica obedece a um recorte temporal, no caso refiro-me àquela final fatídica de 50. Para que esse fato adquira a carga de fato histórico é necessário integrá-lo a uma rede de acontecimentos, em relação aos quais vai ganhar um sentido: é a função da narrativa.  O tempo fará deste jogo um fato histórico, pelo mesmo motivo que fez o da final de 50, a fixação das recordações dos indivíduos e da coletividade.

Ricouer: E como se chegaria a essa conclusão do ponto de vista metodológico?

Furet:  Organizando os documentos a fim de torná-los comparáveis, de modo a se encontrar uma interpretação coerente.

Ricouer: E quanto ao aspecto subjetivo? Não se pode negar que o historiador contamina sua fonte com a sua visão de mundo, e, muitas vezes interpreta da melhor forma para que se adapte a uma conclusão previsível. Isso quando as fontes já não estão embebidas pela interpretação de outros, visto que a narrativa histórica baseia-se na memória. Por isso, entendo ser impossível a existência de uma versão, uma verdade inquestionável.

Furet: E como isso seria aplicável ao jogo que assistimos?

Ricouer: Explico. O jogo de 50 ficou na memória do povo brasileiro como um evento marcante pela sua imprevisibilidade e a decepção dele decorrente. Para os uruguaios, entretanto, o jogo significou a vitória de seu time em cima do melhor do mundo por puro merecimento. É um fato histórico interpretado por dois segmentos de maneira diversa.  Se adentrarmos mais no tema, podemos colher depoimentos de pessoas que presenciaram o dito jogo. Mesmo que a visão dos brasileiros possa ser generalizada, sempre existirão interpretações e lembranças diferentes. O que eu quero dizer Furet, é que a sua técnica, a história serial, tem a capacidade de captar o fato, mas exclui suas nuances, já que nem tudo pode ser reduzido à estatística.

Furet: Realmente amigo, esse fator não pode ser ignorado. O historiador nada mais é do que um ser pensante não?  Ocorre que no tempo em que vivemos , na transição da história narrativa para a história problema, as conclusões de um trabalho são cada vez menos importantes. O foco está no caminho, nas questões levantadas e não na solução propriamente dita. O que acredito Ricoeur, é que talvez valha a pena a abdicação do magistério social em favor ao rigor dos conceitos e provas mais seguras. Por isso o auxílio da matemática e da estatística.

Ricouer: Entendo o seu ponto amigo. Ocorre que..olha esse drible que o Neymar acabou de dar!

Furet: Cést fantastique!

E os franceses esqueceram um pouco da teoria e deixaram -se  contagiar pela alegria do Maracanã lotado em mais uma tarde de domingo.



Izabel Dompieri de Assis
Nº USP 7619635


Um comentário:

  1. Ótimo texto! Explicativo, esclarecedor e ao mesmo tempo simples. Ainda deu um toque de amizade e leveza ao diálogo entre os dois.

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