Marcanã lotado. Final da Copa do
Mundo de 2014. Brasil e Uruguai. Pessoas, bandeiras, cores, tudo se confundia
na arquibancada formando uma grande massa verde e amarela. No meio da bagunça,
dois franceses rabugentos procuravam seus respectivos lugares. Pessoas com
coletes laranjas tentavam conter o caos, embora não fossem muito efetivas em
sua missão. Enfim, já depois de 10 minutos de jogo, conseguiram sentar.
Ricoeur:
Que caos mais exuberante em meu amigo.
Furet:
Exuberante? Isso é a figuração do inferno. Não sei como você me convenceu. Mas
já que estamos aqui.. diante desse fato histórico..
Ricoeur pensou um pouco..viu o moço
do cachorro quente passar, pensou mais um pouco e prosseguiu o diálogo.
Ricouer:
O que você quer dizer com fato histórico Furet?
Furet:
Esse acontecimento que estamos presenciando é um momento singular no tempo. Não
é redutível nem àquilo que houve antes, nem ao que virá depois.
Ricouer:
Como você pode ter tanta certeza disso? Ao meu ver, só saberemos que o evento
de hoje caracteriza-se como um fato histórico se dito como tal no futuro. Entretanto,
pensando melhor, se adotarmos a concepção de tempo em Agostinho, o futuro é uma
expectativa presente que, no caso em questão, tem estrita relação com a
memória.
Furet:
Em outras palavras,o evento de hoje pode ser considerado um fato histórico dada
a sua relação com o jogo de 1950?
Ricouer:
Exato.
Furet:
Entendo..para mim não deixa de ser diferente. O
jogo de hoje é um fato histórico por toda a carga emocional nele
envolvida. Veja. A narrativa histórica obedece a um recorte temporal, no caso
refiro-me àquela final fatídica de 50. Para que esse fato adquira a carga de
fato histórico é necessário integrá-lo a uma rede de acontecimentos, em relação
aos quais vai ganhar um sentido: é a função da narrativa. O tempo fará deste jogo um fato histórico,
pelo mesmo motivo que fez o da final de 50, a fixação das recordações dos
indivíduos e da coletividade.
Ricouer:
E como se chegaria a essa conclusão do ponto de vista metodológico?
Furet:
Organizando os documentos a fim de torná-los
comparáveis, de modo a se encontrar uma interpretação coerente.
Ricouer:
E quanto ao aspecto subjetivo? Não se pode negar que o historiador contamina
sua fonte com a sua visão de mundo, e, muitas vezes interpreta da melhor forma
para que se adapte a uma conclusão previsível. Isso quando as fontes já não
estão embebidas pela interpretação de outros, visto que a narrativa histórica
baseia-se na memória. Por isso, entendo ser impossível a existência de uma
versão, uma verdade inquestionável.
Furet:
E como isso seria aplicável ao jogo que assistimos?
Ricouer:
Explico. O jogo de 50 ficou na memória do povo brasileiro como um evento
marcante pela sua imprevisibilidade e a decepção dele decorrente. Para os
uruguaios, entretanto, o jogo significou a vitória de seu time em cima do
melhor do mundo por puro merecimento. É um fato histórico interpretado por dois
segmentos de maneira diversa. Se
adentrarmos mais no tema, podemos colher depoimentos de pessoas que
presenciaram o dito jogo. Mesmo que a visão dos brasileiros possa ser
generalizada, sempre existirão interpretações e lembranças diferentes. O que eu
quero dizer Furet, é que a sua técnica, a história serial, tem a capacidade de
captar o fato, mas exclui suas nuances, já que nem tudo pode ser reduzido à
estatística.
Furet:
Realmente amigo, esse fator não pode ser ignorado. O historiador nada mais é do
que um ser pensante não? Ocorre que no
tempo em que vivemos , na transição da história narrativa para a história
problema, as conclusões de um trabalho são cada vez menos importantes. O foco
está no caminho, nas questões levantadas e não na solução propriamente dita. O
que acredito Ricoeur, é que talvez valha a pena a abdicação do magistério
social em favor ao rigor dos conceitos e provas mais seguras. Por isso o
auxílio da matemática e da estatística.
Ricouer:
Entendo o seu ponto amigo. Ocorre que..olha esse drible que o Neymar acabou de
dar!
Furet:
Cést fantastique!
E os franceses esqueceram um pouco
da teoria e deixaram -se contagiar pela
alegria do Maracanã lotado em mais uma tarde de domingo.
Izabel Dompieri de Assis
Nº USP 7619635
Ótimo texto! Explicativo, esclarecedor e ao mesmo tempo simples. Ainda deu um toque de amizade e leveza ao diálogo entre os dois.
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