domingo, 6 de outubro de 2013

Final da copa de 2014

É decisão! O estádio está abarrotado por uruguaios e brasileiros que, vestindo as cores de suas seleções, pintam o Maracanã de verde, amarelo, branco e azul. Nos olhos dos jogadores da Celeste, a ambição de repetir o Maracanazo e cruzar a Fronteira da Paz com o terceiro caneco. Por sua vez, a possibilidade de um hexacampeonato arrepia os jogadores canarinhos que fitam a torcida sabendo da responsabilidade que agora recai sobre suas chuteiras.
A saída pertence ao Uruguai, vai começar a final da Copa do Mundo! Bola em jogo! E a torcida vibra! Em meio toda a tensão dos atletas e agitação dos espectadores, dois sujeitos conversam calmamente em certo ponto da arquibancada:
F - Não sou tão chegado em futebol, aliás, eu gosto, mas não conheço muito bem as regras. O que você acha, Paul?
R - Eu até que gosto, e estou bastante interessado no resultado do jogo.
F - As pessoas estão eufóricas demais com essa final. Gritam, choram e evocam um passado que não mais lhe pertencem. E isso nem vai mudar a vida delas, daqui a alguns dias isso não será mais tão importante.
R - Mas se o jogo de hoje não é importante, assim como o Maracanazo, então por que você veio aqui hoje?
 F - Não disse que o Maracanazo não foi relevante, acredito que até foi e esse é um dos motivos que me trouxeram aqui. Mas, para além dessas questões, estou curioso também para saber o resultado. É uma boa forma de aproveitar o tempo livre aqui no Brasil. Eu só penso que a tal decisão de 1950 foi explorada demais nesses sessenta e tantos anos.
R - Mas nunca acharam uma resposta para o que aconteceu...
F - Não sei se existe uma resposta verdadeira. Aliás, a única perguntam que fazem é “por que?”, quando o Maracanazo foi uma final como outra qualquer, bem menos extraordinária ou significativa do que os saudosistas gostam de lembrar. O jeito que aquela decisão é vista só serve para criar mitos e engrandecer ainda mais aquele momento, que nem é tão relevante assim se formos parar para pensar.
R - Mas então o que você sugere?
F - Acho que é preciso colocar o objeto dentro de seu contexto e trabalhá-lo a partir de uma rede de significações comparáveis. A final de 1950 até pode ser o objeto, mas a priori ela não deve ser considerada mais importante do que outros fatos históricos.
R - Legal... Vamos ver o jogo.
(...)
        Thiago Silva recupera a bola no campo de defesa e passa para Oscar, que trabalha a bola no círculo central. Marcelo domina e se livra do marcador, avançando pela lateral esquerda do campo. Luiz Gustavo aparece para receber a bola, triangula com Paulinho e vai até a linha de fundo. O cruzamento sai com perfeição, Alexandre escora com a cabeça, estufando as redes uruguaias. É Gol!!!
F – Uma coisa que eu acho impressionante é como a rememoração da fatídica final de 50 teve impacto nessas pessoas. Olha ali do outro lado! Os torcedores estão com lágrimas nos olhos, aquele outro está quase devorando sua camiseta de tão nervoso.
R - O que quer dizer com isso, François? Não acha que eles estão simplesmente emocionados com o jogo?
F - Eles estão, isso é bem fácil perceber, Paul. Mas o que quero dizer é que parece que todos só repetem e engrandecem acriticamente a final de 1950.
R - Você acha que todos os brasileiros e uruguaios entenderam ou entendem o Maracanazo dessa forma? Para mim é bem claro que cada um lê esse momento de uma forma diferente, inclusive existem pessoas que pouco se importam com o que está acontecendo neste instante e muito menos com o que aconteceu.
F - Certo, mas isso não muda a forma como aquela final é mostrada para as pessoas. É por essas e por outras que proponho o desapego a este acontecimento. É preciso problematizar e não inventar uma narração indiscriminadamente, porque ela não dá profundidade nenhuma, só serve para criar mitos, como eu já disse.
R - Acho que você enxerga a narrativa de uma forma muito estreita, meu amigo. Fora que você está exagerando um pouco e tirando toda a importância que a final de 1950 teve para as seleções e para os torcedores. Isso abalou muito os brasileiros e deixou os uruguaios extremamente eufóricos. Estão todos tensos hoje porque há uma expectativa de manutenção ou mudança de uma situação que foi colocada lá em 50.
F - Pode até ser, mas em longo prazo isso nem é tão relevante assim. “Os homens gostam de pensar que os eventos do futuro serão comparáveis aos do passado. Estamos, contudo, num mundo totalmente diferente.”* Os países envolvidos nesta final são os mesmos de 1950, mas as semelhanças acabam ai. Nem mesmo o estádio é o mesmo, visto as adaptações exigidas pela FIFA.
R - Não concordo muito com essa ideia de que isso não é relevante para a vida das pessoas, mas tudo bem. O que me preocupa é você achar que essa visão hegemônica sobre a final de 1950 existe somente porque é fruto de uma narrativa...
F - Não é essa a questão, eu só me proponho a uma abordagem diferente da história. No conjunto de todas as copas do mundo que as duas seleções participaram ou participarão, o Maracanazo, como evento isolado, nem é tão relevante. O Brasil perdeu outras finas em copas do mundo, ou você já se esqueceu da vitória da nossa seleção em 1998?
R – Meu caro amigo Furet, o que eu estava tentando dizer é que a abordagem que você está pensando não deixa de produzir uma narrativa. Você diz que é preciso “problematizar”, mas mesmo se você serializar os cartões amarelos, expulsões e gols de todas as copas do mundo, buscando entender algum aspecto da competição, você estará inequivocamente produzindo uma narrativa. 
F – Ricoeur, acho que levar sua filosofia para uma partida de futebol não foi uma boa ideia, acabamos de perder o gol uruguaio. Você está realmente afirmando que não existe história sem narração?
R – Sim! É justamente isso. Acompanhe meu raciocínio: Para fazer história é preciso do tempo. Se tiramos as dimensões temporais da produção historiográfica, deixamos de fazer história e passamos a filosofar. Como você já deve ter percebido, o tempo não é algo tangível. E minha hipótese é justamente que ele só é perceptível a mim, a você, e a estes torcedores quando articulado de forma narrativa, quando ele se distende e volta ao presente como memória.
F – Eu acho que eu estou até entendendo. Mas qual a implicação disso para a prática dos historiadores?
R – Ah, eu sinceramente não pensei muito nis... Olha um pênalti!
   Aos 45 minutos do segundo tempo, o jogo está 1x1! Pênalti duvidoso para o Uruguai, o árbitro autoriza a cobrança e... Fim de jogo no Maracanã!
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
FURET, François. Relatos de história - François Furet. In: SILVA, Juremir Machado da.Visões de uma certa Europa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 31.

Natania Neres da Silva - Noturno - Nº USP: 7198327

Um comentário:

  1. Bom texto, simples, direto e objetivo quanto à interpretação diferente que ambos os autores dão ao evento da partida de futebol. Furet, o considerando como somente mais um acontecimento histórico e Ricoeur tentando valorizar a questão da memória e da expectativa da partida de 2014 em relação à mítica de 1950. Inclusive a pontuação de Furet em relação à criação de um mito foi muito bem colocada, de forma original.

    ResponderExcluir