É decisão! O estádio está abarrotado por
uruguaios e brasileiros que, vestindo as cores de suas seleções, pintam o
Maracanã de verde, amarelo, branco e azul. Nos olhos dos jogadores da Celeste,
a ambição de repetir o Maracanazo e
cruzar a Fronteira da Paz com o terceiro caneco. Por sua vez, a possibilidade
de um hexacampeonato arrepia os jogadores canarinhos que fitam a torcida
sabendo da responsabilidade que agora recai sobre suas chuteiras.
A saída pertence ao Uruguai, vai começar a final
da Copa do Mundo! Bola em jogo! E a torcida vibra! Em
meio toda a tensão dos atletas e agitação dos espectadores, dois sujeitos
conversam calmamente em certo ponto da arquibancada:
F - Não sou tão chegado em
futebol, aliás, eu gosto, mas não conheço muito bem as regras. O que você acha,
Paul?
R - Eu até que gosto, e estou
bastante interessado no resultado do jogo.
F - As pessoas estão eufóricas
demais com essa final. Gritam, choram e evocam um passado que não mais lhe
pertencem. E isso nem vai mudar a vida delas, daqui a alguns dias isso não será
mais tão importante.
R - Mas se o jogo de hoje não é
importante, assim como o Maracanazo,
então por que você veio aqui hoje?
F - Não disse que o Maracanazo não foi relevante, acredito que até foi e esse é um dos
motivos que me trouxeram aqui. Mas, para além dessas questões, estou curioso
também para saber o resultado. É uma boa forma de aproveitar o tempo livre aqui
no Brasil. Eu só penso que a tal decisão de 1950 foi explorada demais nesses
sessenta e tantos anos.
R - Mas nunca acharam uma
resposta para o que aconteceu...
F - Não sei se existe uma
resposta verdadeira. Aliás, a única perguntam que fazem é “por que?”, quando o Maracanazo foi uma final como outra
qualquer, bem menos extraordinária ou significativa do que os saudosistas
gostam de lembrar. O jeito que aquela decisão é vista só serve para criar mitos
e engrandecer ainda mais aquele momento, que nem é tão relevante assim se
formos parar para pensar.
R - Mas então o que você sugere?
F - Acho que é preciso colocar o
objeto dentro de seu contexto e trabalhá-lo a partir de uma rede de
significações comparáveis. A final de 1950 até pode ser o objeto, mas a priori
ela não deve ser considerada mais importante do que outros fatos históricos.
R - Legal... Vamos ver o jogo.
(...)
Thiago
Silva recupera a bola no campo de defesa e passa para Oscar, que trabalha a
bola no círculo central. Marcelo domina e se livra do marcador, avançando pela
lateral esquerda do campo. Luiz Gustavo aparece para receber a bola, triangula
com Paulinho e vai até a linha de fundo. O cruzamento sai com perfeição,
Alexandre escora com a cabeça, estufando as redes uruguaias. É Gol!!!
F – Uma coisa que eu acho
impressionante é como a rememoração da fatídica final de 50 teve impacto nessas
pessoas. Olha ali do outro lado! Os torcedores estão com lágrimas nos olhos, aquele
outro está quase devorando sua camiseta de tão nervoso.
R - O que quer dizer com isso, François?
Não acha que eles estão simplesmente emocionados com o jogo?
F - Eles estão, isso é bem fácil
perceber, Paul. Mas o que quero dizer é que parece que todos só repetem e
engrandecem acriticamente a final de 1950.
R - Você acha que todos os
brasileiros e uruguaios entenderam ou entendem o Maracanazo dessa forma? Para mim é bem claro que cada um lê esse
momento de uma forma diferente, inclusive existem pessoas que pouco se importam
com o que está acontecendo neste instante e muito menos com o que aconteceu.
F - Certo, mas isso não muda a
forma como aquela final é mostrada para as pessoas. É por essas e por outras
que proponho o desapego a este acontecimento. É preciso problematizar e não
inventar uma narração indiscriminadamente, porque ela não dá profundidade
nenhuma, só serve para criar mitos, como eu já disse.
R - Acho que você enxerga a
narrativa de uma forma muito estreita, meu amigo. Fora que você está exagerando
um pouco e tirando toda a importância que a final de 1950 teve para as seleções
e para os torcedores. Isso abalou muito os
brasileiros e deixou os uruguaios extremamente eufóricos. Estão todos tensos
hoje porque há uma expectativa de manutenção ou mudança de uma situação que foi
colocada lá em 50.
F
- Pode até ser, mas em longo prazo isso nem é tão relevante assim. “Os homens
gostam de pensar que os eventos do futuro serão comparáveis aos do passado.
Estamos, contudo, num mundo totalmente diferente.”* Os países envolvidos nesta final
são os mesmos de 1950, mas as semelhanças acabam ai. Nem mesmo o estádio é o
mesmo, visto as adaptações exigidas pela FIFA.
R - Não concordo muito com essa
ideia de que isso não é relevante para a vida das pessoas, mas tudo bem. O que
me preocupa é você achar que essa visão hegemônica sobre a final de 1950 existe
somente porque é fruto de uma narrativa...
F - Não é essa a questão, eu só
me proponho a uma abordagem diferente da história. No conjunto de todas as
copas do mundo que as duas seleções participaram ou participarão, o Maracanazo, como evento isolado, nem é tão
relevante. O Brasil perdeu outras finas em copas do mundo, ou você já se
esqueceu da vitória da nossa seleção em 1998?
R – Meu caro amigo Furet, o que
eu estava tentando dizer é que a abordagem que você está pensando não deixa de
produzir uma narrativa. Você diz que é preciso “problematizar”, mas mesmo se
você serializar os cartões amarelos, expulsões e gols de todas as copas do
mundo, buscando entender algum aspecto da competição, você estará
inequivocamente produzindo uma narrativa.
F – Ricoeur, acho que levar sua
filosofia para uma partida de futebol não foi uma boa ideia, acabamos de perder
o gol uruguaio. Você está realmente afirmando que não existe história sem
narração?
R – Sim! É justamente isso. Acompanhe
meu raciocínio: Para fazer história é preciso do tempo. Se tiramos as dimensões
temporais da produção historiográfica, deixamos de fazer história e passamos a
filosofar. Como você já deve ter percebido, o tempo não é algo tangível. E
minha hipótese é justamente que ele só é perceptível a mim, a você, e a estes
torcedores quando articulado de forma narrativa, quando ele se distende e volta
ao presente como memória.
F – Eu acho que eu estou até
entendendo. Mas qual a implicação disso para a prática dos historiadores?
R – Ah, eu sinceramente não
pensei muito nis... Olha um pênalti!
Aos 45 minutos do segundo tempo,
o jogo está 1x1! Pênalti duvidoso para o Uruguai, o árbitro autoriza a cobrança
e... Fim de jogo no Maracanã!
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* FURET, François. Relatos de história - François Furet. In: SILVA,
Juremir Machado da.Visões de uma
certa Europa.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 31.
Natania Neres da Silva - Noturno - Nº USP:
7198327
Bom texto, simples, direto e objetivo quanto à interpretação diferente que ambos os autores dão ao evento da partida de futebol. Furet, o considerando como somente mais um acontecimento histórico e Ricoeur tentando valorizar a questão da memória e da expectativa da partida de 2014 em relação à mítica de 1950. Inclusive a pontuação de Furet em relação à criação de um mito foi muito bem colocada, de forma original.
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