Dia
dezesseis de julho de mil novecentos e cinquenta, Rio de Janeiro, Maracanã. Às
três da tarde, a seleção brasileira de futebol entra em campo para cumprir
tabela e sair campeã da Copa do Mundo. Duzentas mil pessoas como testemunhas
dentro do estádio, nunca saberemos quantas do lado de fora, esperando. Sete a
um contra a Suécia, seis a um contra a fortíssima Espanha, ao som de Touradas
em Madrid, música cantada em uníssono nas arquibancadas. Os uruguaios não
seriam problema. Dirigentes e políticos, muitos deles, tinham entrada livre no
vestiário. A palavra oportunismo não seria suficiente para descrever o uso que
faziam daquela seleção.
Ghiggia... Ghiggia... Ghiggia... Ghiggia... Ghiggia.
Eu nunca esqueci aquela bola, disse um dia o goleiro Barbosa. Um gol, uma
frustração, título uruguaio e sessenta e quatro anos de eco.
Dia treze
de julho de dois mil e quatro, Rio de Janeiro, Maracanã. Às quatro da tarde, a
seleção brasileira de futebol entra em campo para espantar um fantasma, um eco.
Desde que, no dia oito, o Uruguai venceu, surpreendentemente, sua semifinal,
era só do que se falava: uma nova final entre brasileiros e uruguaios, como a
de 50. No dia 9, para reforçar as conversas de boleiros, os programas de
televisão, os portais de internet e os debates de facebook, Brasil e Espanha,
como em 50. Também como em 50, o Brasil fez 6 a 1, goleada incontestável. O
Brasil faria de novo uma final, em casa, no Maracanã, contra o Uruguai.
Políticos e dirigentes apareciam na concentração, nas coletivas de imprensa, o
oportunismo não poderia ser maior.
Todo mundo
parecia saber tudo sobre futebol, sobre a história do esporte e das copas do
mundo. Especialistas de sobra por todos os lados. O que ninguém sabia é que
aqueles dois gringos pálidos no camarote climatizado eram Paul Ricoeur e
François Furet. Mas eles não morreram?, perguntaria o leitor. Não, não seja
pentelho, amigo. Vivos e saudáveis, estavam juntos, lado a lado, tentando se
ouvir apesar do barulho que vinha do lado de fora do estádio, onde estavam os
torcedores vibrantes e apaixonados. Já que dentro do Maracanã todos estavam
sentados e quietos, ricos e comportados, como uma plateia de teatro, os dois
intelectuais conseguiram estabelecer um diálogo, cujo início perdemos enquanto
explicava o contexto:
- Eu
entendo os torcedores – disse Furet – mas não entendo jornalistas, os
acadêmicos.
O Uruguai
ameaça com um chute de fora da área.
- Como
assim? O que você não entende? Há duas finais com as mesmas seleções, é quase inevitável
narrar essa história. – disse Ricoeur.
Júlio
César, goleiro do Brasil, fez careta e levou uma mão à coxa, parecia lesionado.
- Todas
essas reportagens, artigos, textos de internet...as pessoas que deveriam ter
mais cuidado com a História falam desse jogo como um final determinado, como se
algo que começou em cinquenta fosse acabar aqui, hoje, com o Brasil espantando
um “fantasma” ou a história se repetindo. – explicou Furet.
O Uruguai
chega perto novamente, Júlio César quase toma um gol, a dor na coxa atrapalhou
seu salto.
- Não
entendi qual o problema.
O Brasil
sai com a bola nos pés de Paulinho, que acerta um belo passe para Oscar.
- O
problema é que os atletas não são os mesmos, a torcida não é a mesma, nem o
estádio é o mesmo, olhe pra esse Maracanã desfigurado! Não há relação assim tão
imediata entre as duas partidas. Esses textos e reportagens são totalmente
arbitrários.
O Uruguai
chega perto do gol, chutando uma bola na trave. Júlio César pede para ser
substituído.
- Concordo
até ai. Mas você sabe como eu costumo pensar: o passado existe como presente do
passado, esse jogo de cinquenta continuou existindo esse tempo todo. E também
não vejo problema na narrativa construída pelos historiadores, jornalistas,
mesmo pelos torcedores que falam sobre essas partidas. Eles criam a intriga e,
configurando a narrativa, estabelecem uma ligação entre as duas Copas –
retrucou Ricoeur.
Jefferson
entra em campo. Torcedores das mais variadas nacionalidades gritam: Barbosa!
Barbosa!! Barbosa!!!
- Não vê
problema? Eu também não. – disse Furet se aproveitando do jogo de palavras –
Não vejo problema nenhum proposto por essas pessoas. Falta uma problematização,
falta questionarem se há alguma relação entre a Copa de cinquenta e a de
quatorze, falta uma história que não seja teleológica como essa que andam
fazendo. Repito: os torcedores apaixonados eu entendo, não entendo os jornalistas
e acadêmicos. Estes poderiam muito bem tratar as duas partidas mostrando, entre
uma e outra, as continuidades e permanências do futebol de cada um dos países,
mostrando quantos novos talentos revelaram, quantos novos títulos conseguiram,
qual o desempenho das seleções nos últimos anos, as vitórias nos confrontos
diretos. Sem estabelecer essa narrativa com uma conexão forçada entre dois
acontecimentos separados por 64 anos.
O Uruguai
esboça um ataque, mas na sequência é frustrado pela defesa brasileira.
- E você
acha mesmo que fazendo isso não haveria uma narrativa construída e costurada a
esse texto? – replicou Ricoeur como quem chuta a gol enquanto o adversário
esperava um toque de lado.
Neymar
recebe grande bola na ponta esquerda, a zaga uruguaia parte para marcar Fred,
que estava livre, mas o camisa 11 do cabelo estranho surpreende e coloca a bola
no ângulo. Um a zero para o Brasil. Dizem que nesse momento o eixo da Terra
mudou um pouco o seu ângulo, tamanha a euforia dos brasileiros espalhados pelo
planeta.
- Lá vem
você falar que tudo é narrativa, ou quase-narrativa. – disse Furet bufando, um
pouco depois dos ânimos terem se acalmado no estádio.
-
Exatamente! Muitas vezes os historiadores também criam relações entre eventos
que estão muito distanciados um do outro no tempo cronológico. No tempo
narrativo, porém, estes eventos podem ser situados um depois do outro, e desta
forma estabelece-se uma conexão, cria-se um significado. – Ricoeur disse isso
enquanto comprava uma cerveja e um pacote de amendoim.
O primeiro
tempo termina com vitória do Brasil.
- Não há
nenhum critério nisso que você está falando, Ricoeur. Desculpe. Se tudo é
narrativa seu argumento é tautológico! Não exclui nada, não tem utilidade
acadêmica.
O Uruguai
reagiu, com uma troca de passes perto da meia lua, uma falha de Thiago Silva e
um belo chute de Forlan, um a um! O atacante tirou a camisa e por baixo havia
uma outra, onde se lia: Ghiggia vive! Cartão amarelo pela infração, mas valeu
pelo nervosismo que passaram a sentir os brasileiros.
- Nem tudo
é narrativa. Mas a História fala sobre os homens, sobre suas ações, sobre
permanências e mudanças, processos e conflitos. Por mais que se afaste o foco,
saindo do acontecimento à estrutura, como você prefere, ainda haverá narrativa
porque o texto trabalhará com elementos pré-narrativos, que fazem parte da
prefiguração do campo prático... – Ricoeur foi interrompido.
Falta em
Neymar, falta grave. Cartão amarelo para Lugano. Um a um, jogo duro e tenso.
- Mimese 1,
é isso? Já li seus textos. Você está querendo dizer que se eu problematizasse a
história do futebol dos dois países, descrevesse meu método, referenciasse as
fontes, deixasse claro como é anacrônico estabelecer uma relação direta entre
esse jogo e o de cinquenta...ainda assim eu estaria fazendo a mesma coisa que
esses jornalistas e acadêmicos que narram uma história começando 64 anos atrás
e terminando hoje?
O Uruguai
levou perigo à área brasileira. Jefferson estava abatido pelos gritos de
Barbosa, goleiro negro como ele que tomou o gol da derrota em 50. O restante do
time sentia o peso do empate, a pressão da torcida e não esqueciam o nome
estampado de Ghiggia
- Não a
mesma coisa. Não seja simplista. Apenas digo que você nega a narrativa quando,
na verdade, é impossível fugir dela ao escrever história. As mimeses são
importantes pra entender isso: um estruturalista escreveria um texto sobre esse
jogo ficando preso na fronteira entre a mimese 1 e a 2, entre a prefiguração e
a configuração; alguém que analisasse esse jogo sem levar em conta a outra
partida, esquecendo que essa pressão tamanha sobre os jogadores só acontece
porque a imprensa repete sem parar o que aconteceu em 50, estaria preso na
mimese 2, esquecendo a prefiguração do campo prático e a refiguração, que é a
mimese 3.
O Brasil
chegou perto de um desempate. Fred chutou, no rebote Hernanes chutou, a bola
bateu no zagueiro e Bernard também tentou.
- E qual a
validade de uma narração arbitrária e subjetiva como as que temos visto? Qual a
contribuição delas para o conhecimento? Não há!
Lugano rebateu
uma bola perigosa e salvou os uruguaios mais uma vez.
- É
entendendo essas narrativas construídas, sejam elas mais parecidas com o que
você chama de história problema, sejam mais parecidas com o que você chama de
história narrativa, que partimos do vivido e retornamos a ele, aprendendo,
inclusive, a viver. E, veja, o jogo de 50 realmente está influenciando esses
atletas. Os uruguaios mais confiantes a cada minuto, ao contrário dos
brasileiros, cada vez mais nervosos. – completou Ricoeur.
Faltavam
onze minutos para acabar.
- É
possível chamar isso de História? Você não está colocando a disciplina no mesmo
patamar de uma anedota? – Furet já não sabia muito como responder, formando
argumentos um pouco confusos.
Gol!!! Dois
a um foi placar até o apito final.
Bruno Jeuken Souza
nº 7200103
nº 7200103
Achei o texto fantástico! Além de brincar sempre com a ideia de memória (e por que não a de presente do passado de Agostinho) - seja na segunda camisa de Forlán ou na semelhança física de Jefferson com o goleiro do Brasil de 1950 - é agradrável, fluído, e trata com leveza de conceitos tão densos como os abordados por Furet e Ricoeur.
ResponderExcluirMuito obrigado pelo comentário, Natália!
ExcluirTexto muito bom. Conseguiu pelo diálogo, mediado pela partida de futebol, aprofundar a questão da narrativa nos dois autores, de modo a mostrar o confronto intelectual entre eles. A comparação de História à anedota foi bem interessante.
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