terça-feira, 8 de outubro de 2013

Narração e ação

Como era de se esperar, François Furet e Paul Ricoeur estavam sentados lado a lado no Maracanã, assistindo a final da Copa do Mundo de 2014, Brasil e Uruguai disputando o título. Furet estava lá por seu gosto por futebol. Ricoeur não, nada era tão simples para Paul Ricoeur.
Acontece que os desamores da vida acadêmica acabaram por levar Ricoeur à loucura, fazendo com que se voltasse cada vez mais à existência e à sua espiritualidade aporética. No início não era tão ruim, mas com o passar do tempo começou a ouvir vozes. As palavras de seus mestres ecoavam em sua cabeça, seus pensamentos tornaram-se circulares – não círculos viciosos, sem vida, mas círculos crescentes que, como uma bola de neve transformada em avalanche, tinham tremendo potencial destrutivo. Um dia Heidegger apareceu em um sonho e disse que o que importava mesmo era a intensidade das coisas. O renomado intelectual não se esqueceria daquele sonho – haveria de viver a vida ao máximo, ampliando intensamente sua consciência temporal, vivendo na memória as graças e desgraças do que passou e esperando, angustiado, as possibilidades de vida e morte que o futuro lhe reservava. Ricoeur não vivia apenas o presente, a partir deste vivia também passado e futuro. Seu vício em vida o levou a buscar as mais intensas experiências e nada poderia ser mais intenso que o final da Copa do Mundo no Brasil, por isso estava lá.
R- Ó Deus, me diga! O tempo passa em minha alma ou será minha alma que, atenta, conhece a existência do tempo? Por que? Por que o primeiro tempo não acaba nunca?
          Furet não reconhecera Ricoeur, cuja loucura acabou por transformar completamente a aparência: o rosto velho tatuado com as palavras “lealdade, humildade, procedimento”, a barba longa pintada de verde e amarelo, as robes de monge... Achou melhor ignorar o maluco.
            Ricoeur, contudo, sabia quem era o homem ao seu lado.
            R- Sabe porquê estou aqui, François?
F- Perdão, eu te conheço? Como sabe meu no..
R- Estou aqui para viver o ápice da tragédia! O Uruguai já derrotara o Brasil em uma final de copa neste mesmo estádio. Olhe para o rosto das pessoas, a memória viva desta ferida as persegue hoje. Há infortúnio mais desmerecido que este? Que a repetição dessa bela história? Que estas pobres e nobres pessoas cujo único sentido na vida é o futebol tenham que amargar a derrota mais uma vez? Só seria pior se fosse pela Argentina.
O juiz apitara o fim do primeiro tempo.
F- É, talvez você tenha razão. Seria muito triste mesmo. Ainda bem que está zero a zero, disse sorrindo. De toda forma, quem é você e como sabe meu nome?
R- Eu sou Paul Ricoeur e você é François Furet, o assassino da narrativa!
F- Ricoeur?! Minha nossa, o que aconteceu contigo? E do que você me chamou?
R- Ah, Furet! Continua a negar a importância da narrativa? A se recusar a enxergar como o tempo e a vida dela emergem?!
F- Oi?
R- “O tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal”.
F- Hã?
R- Bonito, né? É uma das idéias centrais da minha obra e está num de meus livros. Não lembro bem da versão original mas sei que o nome em português é Tempo e Narrativa e que as frases que citei estão na página 15 na edição de 1994 da Papirus Editora, é preciso manter a erudição, afinal. Você deveria ler, pode aprender alguma coisa. Contudo, não vou explicar tudo agora, teria que falar do Santo Agostinho, misturá-lo com Aristóteles, Heidegger e sabe-se lá quem mais. Vou é te convencer que não precisa ter tanto medo da narrativa porque, no fundo, é o que você faz profissionalmente.
Ricoeur se pôs a falar, embora parecesse claramente perturbado, suas palavras eram bastante lúcidas. Não é que a avalanche de Ricoeur fazia sentido?
R- Te explico tudo, seu assassino que recusa ver a identidade estrutural entre sua preciosa historiografia e a literatura.  Toda ação humana ocorre no tempo, certo?  Pois bem, a narratividade expressa a experiência humana no tempo. A narrativa que você tanto critica nada mais é do que um tipo de mimese, uma representação da ação humana realizada por meio da tessitura da intriga, pode perguntar pro Aristóteles, embora não possa garantir que ele colocaria bem assim.. Enfim, é o encadeamento lógico e verossímil dos fatos. Não é isso que vocês historiadores fazem? Pois é, toda história é narrativa e se você discorda, azar!
F- Cara, vai com calma! Você vem e me diz que toda história é narrativa, tudo bem! Eu nunca disse que a narrativa não tem importância ou que a história não tem nenhum caráter narrativo. Inclusive está escrito lá na versão portuguesa do meu livro A Oficina da História: “a história oscilará provavelmente sempre entre a arte da narrativa, a inteligência do conceito e o rigor das provas”. Viu? Também tenho boa memória e, mais importante, eu sei que ela está lá... Só não acho que a história deve ser pura narrativa, tem que ser pensada de outra forma, se não fica que nem a história daqueles caras do século XIX, entendeu? Daqueles que pensavam que eventos extraordinários como o de hoje são os únicos autênticos fatos históricos. Assassino da narrativa... cê tá louco! O que eu chamo de história narrativa não é bem isso aí que você fica falando não, é aquela história pouco conceitual mais baseada em momentos que objetos, cujos acontecimentos são somente fatos extraordinários, únicos, cujos procedimentos metodológicos não são explicitados e cuja organização lógica só pode se dar de forma teológica. A história pode ser mais que isso, entendeu? A história quantitativa, por exemplo, é bastante promissora..
- GOOOOOOOOOOL!!!
RF- ?!?
Escrito assim até parece que foi uma conversa breve, mas não foi não. Quando Furet parou de falar o segundo tempo já estava bem encaminhado e o Brasil tinha acabado de fazer um gol.
F- Merde! Não acredito que perdemos o gol!
R- Estou vendo que o tempo está passando e que logo o Brasil ganhará a Copa. Isso não pode acontecer. Peço perdão por abandoná-lo agora, pobre incrédulo, mas devo tomar as rédeas dessa história. Às vezes devemos tomar parte nas ações para que outros as narrem. Fico particularmente feliz que as minhas sejam narradas pelo Galvão – que narrador! – nas palavras dele a ação ganha verdadeira vida! Enfim, vim aqui por um único motivo, François, viver a intensidade da maior tragédia vista pelo homem, uma tragédia que remonta ao passado, quero viver este passado e presente se transformarem em um futuro de dor!
Ricoeur puxou então um revolver de sua mochila. Furet, pasmo, não conseguiu pronunciar uma palavra.
R- Este belo acontecimento que estamos prestes a vivenciar me faz pensar mais uma vez em minha obra. Como você deveria saber, François, o processo mimético da tessitura da intriga só tem sentido como a mediação entre a pré-figuração, o campo prático, e a refiguração. A inteligibilidade da narrativa só pode se dar nessa mediação. É somente com a leitura da narrativa por aquele que a recebe que o processo se completa. Tome meu rádio. Fique atento às belas palavras de Galvão Bueno e faça a leitura correta, assim saberei que minhas ações não serão em vão.

Com essas palavras o velho barbudo com roupas de monge se afastou. Quando Furet recuperou a voz já era tarde demais.

Lucas Mello Neiva, número usp 4335686

2 comentários:

  1. Isso sim é imaginação! que final dramático! Muito bem escrito, muito completo em matéria de conteúdos.

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  2. Belo texto! Trabalhou com a ficção, dando uma carga dramática à suposta loucura de Ricoeur e com os conceitos, conseguindo mediar a questão da narrativa nos dois e recuperando a leitura rasa sobre Furet, aquela que afirma não ter a narrativaa nenhuma importância para este. Conseguiu também criar um humor ácido com o diálogo entre um Furet fã de futebol e um Ricoeur louco. Muito bom!

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