domingo, 6 de outubro de 2013

Cenário: em um estádio de futebol brasileiro, Paul Ricoeur e François Furet assistem à final, Brasil versus Uruguai, e nela divagam sobre o tempo, a história, as metáforas... o diálogo inicia-se aos 25 minutos do segundo tempo.

FF: Se um jogo de futebol fosse uma narrativa, uma jogada dessas seria uma metáfora!
PR: Uma metáfora não é apenas um recurso estético para embelezar a narrativa, assim como uma bela jogada não serve apenas para embelezar o jogo. Por ela, se pode resolver situações que de outra maneira não se encontraria alternativa.
FF: Você não acha possível explicar a realidade apenas pela descrição dela?
PR: Não, eu acredito que as metáforas podem alcançar aspectos da realidade que a descrição não consegue. Quando falo em metáforas, não quero dizer só as figuras poéticas, mas também narrativas inteiras - abertamente ficcionais ou históricas.
FF: Levi-Strauss achava que haviam estruturas por detrás dos fatos históricos, impulsionando-os, para além da ciência racional dos sujeitos históricos envolvidos. Marx concordaria com isso, embora localizasse outras estruturas, privilegiando a economia. Mas nenhum dos dois buscou na poesia, que dirá no futebol, uma maneira de explicitar essas estruturas. Então, para você, a maneira de tratar dessas estruturas é a literatura, não é?
PR: Para mim, a estrutura primeira sobre a qual está fundamentada a História é o tempo. Pois eu acredito que se eles estivessem buscando compreender esse algo que há de de mais fundamental sobre o desenrolar da história, que é o tempo, teriam atentado para impossibilidade de racionalizá-lo pela fala científica, só se pode dar conta dele através de metáforas...
FF: Mas se você diz que narrativas inteiras também são metáforas, não seriam as obras deles metafóricas?
PR: Depende, apenas trechos podem ser considerados narrativas, porém as narrativas históricas e não históricas são sempre metáforas.
FF: Acredito que Levi-Strauss concordaria comigo que compreender o tempo talvez possa ser feito sem metáforas por povos que o pensam de outra maneira que não a nossa.
PR: É possível, ao estudar isso me ative à tradição Ocidental: Aristóteles, Agostinho...
FF: O tempo numa partida de futebol tem várias singularidades, vejamos se você acha alguma metáfora para isso. Sabemos que tem uma duração pré-estabelecida, porém não sabemos exatamente quando vai terminar, visto que pode ser prorrogado...
PR: ...isso me lembra Hegel e sua angústia sobre a morte...
FF: ...seu ritmo de passagem varia de acordo com as circunstâncias e com o observador. Aposto que os brasileiros, com tal vantagem, crêem que o tempo está custando a passar, enquanto os valentes uruguaios, que ainda não se cansaram de tentar, vêem o tempo se esvaindo mais depressa do que gostariam. É a relatividade em ação...
PR: Embora eu estude as metáforas, preciso declinar o seu convite a pensar em uma para representar o tempo do futebol; eu próprio não as crio, geralmente, apenas as analiso.
FF: Mas de fato, o tempo não passa num ritmo idêntico para todos, não concorda? Em algumas sociedades ele tem uma marca e em outras, outra; quando a civilização européia tentou impor aos países do terceiro mundo um suposto "progresso" em seu ritmo não obteve sucesso. Os etnólogos já sabiam que as diversas culturas não estão "adiantadas" ou "atrasadas" umas com relação às outras, mas foi necessário ultrapassar as independências dos países africanos para os franceses se darem conta disso.
São as ideologias que, embora já pouco abraçadas pelo conjunto da população de modo geral, continuam encontrando eco no meio intelectual. Porém, apenas um período histórico adequado à vigência delas lhes permite vicejar, e inclusive no meio acadêmico isso não é diferente.
PR: E não seria o fanatismo pelo próprio time de futebol, inclusive o que representa a nação, um tipo de ideologia com vigor graças às características do tempo presente? 
FF: Bem observado: enquanto considerei as ideologias fascista e socialista ultrapassadas com a passagem do tempo, o nacionalismo, que lhes é anterior, ainda sobrevive vigorosamente entre as massas. Reconheço que tanto o fascismo quanto o socialismo ainda coexistem com o nacionalismo - mais moderado que o de Mussolini, é verdade - no tempo presente, mas felizmente hoje são minoritários.
PR: A julgar pelo grande empreendimento de dinheiro neste estádio, eu me perguntaria se o nacionalismo é assim tão minoritário...
FF: ... meu caro, estás sendo ingênuo: tal volume de gastos só se justifica por grandes desvios de verba!
[Ambos riem]
FF: Já que apenas analisas as metáforas, analise a minha: penso que Levi-Strauss consideraria o técnico do time um etnólogo, e um narrador de partida de futebol um historiador.
Enquanto o primeiro analisa as estruturas (se bem que, muito diferente do etnólogo, com o objetivo de intervir nelas), o segundo analisa fatos pontuais que alteram as estruturas. Um gol, por exemplo, reequilibra toda a harmonia da partida: o comentarista enfoca o gol, e o técnico as estruturas de organização do time que tornaram o gol possível.
Isso sem dúvida desmerece o trabalho do historiador, não acha?
PR: De fato, mas eu estou mais interessado nos paralelos entre historiadores e autores de literatura do que nas semelhanças e dierenças entre historiadores e etnólogos. 
FF: Já eu, nas possibilidades de trato do futebol pela história serial: levando em consideração que gols, faltas, tempo com posse de bola, entre tantas outras variáveis das partidas são passíveis de serem quantificadas, e comparadas entre períodos, eu adoraria ler um trabalho que estabelecesse essas comparações e relacionasse com o restante do andamento da socieade.
PR: Esta conversa é uma demonstração tão clara de que não estamos prestando atenção na partida, que acho desnecessário te dizer que não teria o mesmo prazer em uma leitura como essa; o futebol pouco me interessa e ainda menos quando a França não está jogando.
FF: Faltam minutos para o jogo terminar, a favor do Brasil, e sequer demos atenção ao que se passava...!
PR: Uma epopéia para o Brasil, uma tragédia para o Uruguai...

Kátia Gomes da Costa - 7198331 - Noturno

Um comentário:

  1. Muito bom texto. A questão da metáfora, além de pertinente, foi original e criativa. A comparação do Furet entre historiadores e etnólogs foi bem interessante e deu mais corpo a essa personagem do que na maioria dos textos aqui publicados, que se preocuparam mais com o Ricoeur, mas ao mesmo tempo no seu texto, Ricoeur não ficou em desvantagem. Conseguiu equilibrar a fala e a caracterização das personagens e dar conta dos conceitos.

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