A partida
Intervalo
Antes
do gol os dois jovens depararam-se com uma cena que ficou durante muito tempo
cravada em suas lembranças. Um torcedor da seleção brasileira bruscamente
retirava do bolso uma pequena faca e a enterrava na própria garganta. Não tardou
para que um guarda do serviço público viesse com uma tranquilidade que
desconcertou os franceses e recolhesse o corpo já encharcado de sangue. Afora
os torcedores que estavam próximos do incidente, não houve estardalhaço algum.
Toda a atenção recaía para os jogadores que voltavam para o gramado. Percebendo
o olhar de espanto dos dois jovens, o guarda apressou-se em acalmá-los:
“Não assustem. É algo normal em partidas como
estas. O sujeito se mata por não suportar a espera, o tempo que se comprime. Quando
aflição do jogo é tamanha, é comum vermos aquele torcedor que, não suportando o
tempo se alastrando, atira-se da arquibancada superior ou, como fez esse pobre
infeliz, provoca um ferimento mortal em si mesmo. É um acontecimento banal nos
estádios. Só mesmo quem trabalha aqui sabe o quanto a morte é uma rotina.” Os
franceses entreolharam-se. O mais moço ensejou falar alguma coisa quando foi
interrompido pelo apito e pela simultânea explosão da torcida.
Antes
Os
jogadores concentrados, postos no gramado como peças organizadas pelos
respectivos técnicos. Todos, jogadores e equipe técnica, suspensos naquele
momento que precede o apito. O campo estendido, a grama de um verde de
impressionar os olhos. A torcida dispersa tencionada pelo porvir, aguardando a
vitória que já se apresentava na mente de todos os 80 mil torcedores
concentrados no Maracanã e que ocorreria dali a exatos 95 minutos mais
acréscimos. O apito que delimita o início da partida. Deus forjando a luz. Antes do som estridente do apito, uma não-partida,
uma apreensão solta, um futuro vivenciado na memória, mas não atingido em sua
materialidade.
O
apito. Os jogadores dispersos, espraiam-se, estendem-se, espalham-se, distendem-se
pelo gramado. E a bola, um ponto a rolar deliberadamente pelos pés dos
jogadores, funciona como os ponteiros de um relógio ilógico a marcar a
temporalidade do jogo. O futebol.
Primeiro tempo
Foi
no Brasil, em um dos maiores clássicos do futebol mundial, que o filósofo e o
historiador franceses discutiram por um bom tempo acerca do espetáculo do jogo.
Exaltaram-se mais do que o torcedor que terá um fim trágico no intervalo. Encontraram-se
no Brasil ao acaso. Acertaram de ver o espetáculo que inebriava milhares de
pessoas ao redor do mundo. A América do sul fervilhava de tensão com a final da
Copa do Mundo. Brasil e Uruguai, clássico histórico que encontrou, no entender
de Paul, um ponto de convulsão na partida de 1950. François, todo cheio de si,
foi logo filosofando:
“É
possível narrarmos uma história, Paul. A história dos grandes confrontos entre
Brasil e Uruguai. Certamente sua interpretação é válida, ou seja, o ápice da
nossa história, ou o ponto de sua convulsão poderia ser 1950. Mas aí,
estaríamos privilegiando o fator vitória de campeonato. Trata-se de um jogo, ou
melhor, da história de um confronto, não podemos privilegiar o fator vitória ou
derrota e querer a partir daí reduzir nossa história a um modelo teleológico,
como se ela estivesse predestinada a encerrar-se numa tabela que demonstra os
resultados obtidos em todos os confrontos. Busquemos uma história problemática
e assumamos que um fato como uma vitória de final de campeonato só ganha valor
de fato histórico se esse for o nosso intuito. Nossa história na certa
começaria na Copa América de 1916...”.
“Por
que na Copa América? Concordo plenamente com você, o item vitória é subjetivo.
Poderíamos escolher outro. Com base no que escolheríamos outro item?” E ouvindo
a resposta do amigo. “Você diz com base na nossa preocupação, com base no que
pretendemos com essa história, certo. Portanto, é o problema escolhido que
delimitará a temporalidade. Logo, nossa história não precisaria necessariamente
começar com o primeiro grande confronto entre as seleções...”. Paul foi interrompido
por François no mesmo instante em que um jogador famoso recebia um cartão
vermelho para desespero da torcida uruguaia:
“Poderíamos
escolher o fator violência – qual o jogo mais violento do ponto de vista das
faltas e cartões, e teríamos aí outro ponto válido -, poderíamos escolher o
item esvaziamento do estádio – qual jogo não conseguiu encher nem metade do
estádio, e aí teríamos outro ponto para construirmos nossa história. Qualquer
referencial que venhamos a escolher, somente será válido na medida em que
contribua para a explanação de nosso problema, Nossa história será escrita,
não? Sendo escrita a partir das vitórias ou a partir dos juízes mais
irreverentes de todos os confrontos, teremos índices válidos, certo?”
Paul
concordou com um gesto ao mesmo tempo em que parecia não ter compreendido a
última observação do colega. Na certa, ao se referir ao juiz irreverente como
fator, François fora inspirado pelo jogo que transcorria. O juiz, que era
argentino, tinha distribuído mais um cartão vermelho, dessa vez para um
brasileiro, por nenhum motivo aparente. Posteriormente, quando inquiri ao juiz
o motivo do cartão, ele me respondeu com um risinho de escárnio estampado no
rosto que buscara equiparar as duas equipes em número de jogadores.
Os
corpos faziam, guiados pelo movimento da bola, verdadeiros desenhos pelo campo.
Ora comprimiam-se para delírio dos técnicos que presavam pelo esquema tático
definido dias antes do confronto, ora escorriam como se fossem fios de água a
confluir rumo ao mar por diferentes vias. Aquele movimento prolongado apenas
contribuía para que o nervosismo dos torcedores aumentasse. Nos telões
espalhados pelo estádio, os lances mais dramáticos eram repassados numa
constante desnorteadora afim de que o público não se irritasse com a demora das
cobranças de faltas, escanteios e etc. Os franceses prosseguiam:
“O
objeto de nossa história nós construiremos. Talvez o confronto entre Brasil e Uruguai
seja apenas um pretexto para tratarmos da dominação do espetáculo pela
tecnologia, Paul. Agora mesmo um francês deve estar imerso numa compreensão
mais vasta deste jogo do que nós mesmos que estamos aqui. No futuro, um francês
poderá ter uma compreensão infinitamente maior do que foi este jogo do que nós
que estamos vivenciando-o.” E após uma pausa, François prosseguiu. “Podemos
elencar todos os itens aqui mencionados e elaborarmos a história do confronto
entre Brasil e Uruguai. Integraríamos itens e fatores numa rede de
significados. Partiremos de uma questão e depois buscaremos onde encontrar as
respostas pra tais questões. Tornaremos fatos aparentemente banais em focos
condutores de nossa narrativa...”.
Durante
o intervalo os colegas acordaram mais detalhes sobre a história que teceriam.
Paul deixou-se levar pela magnitude do espetáculo:
“Você
falando tudo isso me traz uma sensação boa. Nesse presente, minha atenção
transviou-se. Reside unicamente na aflição da torcida a ansiar por um gol que
não veio. Não é mais a partida que se trava no campo que me atraí, é a história
da inquietude dos torcedores! Olhe, François, até os holofotes do estádio miram
os torcedores da partida. O gol que certamente virá não é importante, ao menos
pra mim. Olhe aquilo! O que me interessa é a inquietude daquele rapaz. O que
ele retira do bolso?”
O
rapaz retirava do bolso uma faca.
Segundo tempo.
O
que houve antes da partida? Não importa. Nossa história que trata do encontro
entre os franceses, na final da Copa do Mundo de 2014, que tencionaram escrever
uma história do embate entre Brasil e Uruguai começa a partir do jogo, no
máximo a partir de seu antes imediato. Mas então começa a partir do antes
imediato, que é na verdade seu começo real.
“Só
podemos falar desse jogo na medida em que ele aconteceu. Se aconteceu teve um
começo. Um ponto inicial que pode ser metaforizado na imagem da ponta de uma
agulha. Ou então, já acontecia antes, conforme os homens ansiavam por ele ao
aguardarem o cumprimento do calendário geral da Fifa? Sim, acontecia no tempo
da espera, da expectativa. O agir faz o tempo. Foi o apito do juiz que marcou o
início do jogo. Foi o mesmo apito que marcará seu fim. Mas o jogo começara
antes dos noventa minutos. Na certa, não acabará depois”.
“Então
essa partida precisa acabar para ter começado?” questionou François?
“Na
verdade, teremos apenas o todo da partida quando ela efetivamente acabar.
Definitivamente, literalmente, a partida para aquele rapaz não acabou. O tempo
arrastou-se, fez corpo mole. Ele agiu e antecipou o fim da partida que para ele
acabou ali, não?”
“Aporia
maldita! Estamos aqui, e veremos que o jogo irá acabar. Foi a vida dele que acabou,
não o jogo.”
“E
a partida também, visto que para o torcedor o momento final dela foi quando ele
encerrou-se em seu desassossego. Ele não viu o fim da partida.”
“Mas
ele sabia que a partida iria acabar”.
“Aporia
desafiante! Então ele viu o fim da partida. No presente do futuro, ele
vislumbrou o fim da partida. A morte na verdade foi uma maneira de fugir do
resultado bruto. Sim, ele viu o fim da partida, mas chovia torrencialmente. Ele
estava perdido pelo campo. E não conseguia discernir mais quais eram os
jogadores de seu time. Olhava o placar eletrônico e um zero a zero cismava em
permanecer infinitamente. Ele previu o fim do jogo, mas não previu seu
resultado, talvez tivesse medo. Daí a morte como solução. A partida acabou e
não acabou para ele, as duas possibilidades não se anulam.”
Tanta
elucubração não permitiu que os jovens acompanhassem o movimento que deu no
gol.
O gol
“Mas
em que ponto do espaço-tempo haveria começado esse movimento que resultou no
gol? Quando foi o começo do gol? No choro do goleiro que falhou? No golpe que o
atacante deu na bola. No chute do outro goleiro que lançou a bola direto para o
lateral esquerdo do seu time? No apito inicial do jogo que motivou alguma
sensação boa para o goleiro do time vencedor? No dia do nascimento do goleiro
que deu o chute certeiro para o lateral que chutou para o atacante que fez o
gol fazendo o outro goleiro chorar? No dia do nascimento da mãe do goleiro?!
Céus! É isso, François, depende! É o tecer da intriga que nos imprime uma
sensação de tempo, François!”
O
gol mesmo, certeiro e concreto, partiu, como disse Paul, do golpe que o
atacante desferiu na bola. A velocidade foi tamanha que mesmo com o telão
eletrônico reproduzindo o gol em câmera lenta, ficou difícil para o público
acompanhar o movimento da bola. É que existem alguns instantes presentes que
nossa percepção humana não é capaz de acompanhar.
É
que o tempo arrasta-se em duas direções. Ao infinito e à sua máxima compressão.
Depois
Depois
é o fim. O fim da partida que parte do apito final. O público despertando. A
consciência de que a vida dura não dá pausa. Pessoas dispersando. Cada um
rumando para os pontos de ônibus. Uns alegres, festivos, outros tristes, ainda
mais aflitos. No campo, festa pra uns. Um torcedor do time vencido chora como
uma criança, agacha e morde o gramado, rasgando-o como se ele fosse o juiz, o
qual era visto como o culpado por favorecer time adversário. Com a boca suja de
terra, rasga a camisa e grita numa convulsão apocalíptica.
Depois
ainda. O vazio do campo. Os faxineiros recolhendo papéis, confetes, a camisa
rasgada. O silêncio de um campo que foi o palco de um confronto que poderá
entrar para a história do futebol mundial, ou poderá ser esquecido pela ação
certeira do tempo. Os colegas franceses poderão contribuir para a lembrança ou
para o esquecimento, tudo dependerá da história que saíra desse encontro.
Magno Henrique
de S. Freitas
Trabalho para o
curso de Teoria da História II - Professor José Vasconcelos.
Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de História.
Bom texto, optou por colocar no diálogo as diversas possibilidades da história. Poderia ter trabalhado também o conceito de narrativa.
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