segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A partida


Intervalo
Antes do gol os dois jovens depararam-se com uma cena que ficou durante muito tempo cravada em suas lembranças. Um torcedor da seleção brasileira bruscamente retirava do bolso uma pequena faca e a enterrava na própria garganta. Não tardou para que um guarda do serviço público viesse com uma tranquilidade que desconcertou os franceses e recolhesse o corpo já encharcado de sangue. Afora os torcedores que estavam próximos do incidente, não houve estardalhaço algum. Toda a atenção recaía para os jogadores que voltavam para o gramado. Percebendo o olhar de espanto dos dois jovens, o guarda apressou-se em acalmá-los:
  “Não assustem. É algo normal em partidas como estas. O sujeito se mata por não suportar a espera, o tempo que se comprime. Quando aflição do jogo é tamanha, é comum vermos aquele torcedor que, não suportando o tempo se alastrando, atira-se da arquibancada superior ou, como fez esse pobre infeliz, provoca um ferimento mortal em si mesmo. É um acontecimento banal nos estádios. Só mesmo quem trabalha aqui sabe o quanto a morte é uma rotina.” Os franceses entreolharam-se. O mais moço ensejou falar alguma coisa quando foi interrompido pelo apito e pela simultânea explosão da torcida.

Antes
Os jogadores concentrados, postos no gramado como peças organizadas pelos respectivos técnicos. Todos, jogadores e equipe técnica, suspensos naquele momento que precede o apito. O campo estendido, a grama de um verde de impressionar os olhos. A torcida dispersa tencionada pelo porvir, aguardando a vitória que já se apresentava na mente de todos os 80 mil torcedores concentrados no Maracanã e que ocorreria dali a exatos 95 minutos mais acréscimos. O apito que delimita o início da partida. Deus forjando a luz.  Antes do som estridente do apito, uma não-partida, uma apreensão solta, um futuro vivenciado na memória, mas não atingido em sua materialidade.
O apito. Os jogadores dispersos, espraiam-se, estendem-se, espalham-se, distendem-se pelo gramado. E a bola, um ponto a rolar deliberadamente pelos pés dos jogadores, funciona como os ponteiros de um relógio ilógico a marcar a temporalidade do jogo. O futebol.

Primeiro tempo
Foi no Brasil, em um dos maiores clássicos do futebol mundial, que o filósofo e o historiador franceses discutiram por um bom tempo acerca do espetáculo do jogo. Exaltaram-se mais do que o torcedor que terá um fim trágico no intervalo. Encontraram-se no Brasil ao acaso. Acertaram de ver o espetáculo que inebriava milhares de pessoas ao redor do mundo. A América do sul fervilhava de tensão com a final da Copa do Mundo. Brasil e Uruguai, clássico histórico que encontrou, no entender de Paul, um ponto de convulsão na partida de 1950. François, todo cheio de si, foi logo filosofando:
“É possível narrarmos uma história, Paul. A história dos grandes confrontos entre Brasil e Uruguai. Certamente sua interpretação é válida, ou seja, o ápice da nossa história, ou o ponto de sua convulsão poderia ser 1950. Mas aí, estaríamos privilegiando o fator vitória de campeonato. Trata-se de um jogo, ou melhor, da história de um confronto, não podemos privilegiar o fator vitória ou derrota e querer a partir daí reduzir nossa história a um modelo teleológico, como se ela estivesse predestinada a encerrar-se numa tabela que demonstra os resultados obtidos em todos os confrontos. Busquemos uma história problemática e assumamos que um fato como uma vitória de final de campeonato só ganha valor de fato histórico se esse for o nosso intuito. Nossa história na certa começaria na Copa América de 1916...”.
“Por que na Copa América? Concordo plenamente com você, o item vitória é subjetivo. Poderíamos escolher outro. Com base no que escolheríamos outro item?” E ouvindo a resposta do amigo. “Você diz com base na nossa preocupação, com base no que pretendemos com essa história, certo. Portanto, é o problema escolhido que delimitará a temporalidade. Logo, nossa história não precisaria necessariamente começar com o primeiro grande confronto entre as seleções...”. Paul foi interrompido por François no mesmo instante em que um jogador famoso recebia um cartão vermelho para desespero da torcida uruguaia:
“Poderíamos escolher o fator violência – qual o jogo mais violento do ponto de vista das faltas e cartões, e teríamos aí outro ponto válido -, poderíamos escolher o item esvaziamento do estádio – qual jogo não conseguiu encher nem metade do estádio, e aí teríamos outro ponto para construirmos nossa história. Qualquer referencial que venhamos a escolher, somente será válido na medida em que contribua para a explanação de nosso problema, Nossa história será escrita, não? Sendo escrita a partir das vitórias ou a partir dos juízes mais irreverentes de todos os confrontos, teremos índices válidos, certo?”
Paul concordou com um gesto ao mesmo tempo em que parecia não ter compreendido a última observação do colega. Na certa, ao se referir ao juiz irreverente como fator, François fora inspirado pelo jogo que transcorria. O juiz, que era argentino, tinha distribuído mais um cartão vermelho, dessa vez para um brasileiro, por nenhum motivo aparente. Posteriormente, quando inquiri ao juiz o motivo do cartão, ele me respondeu com um risinho de escárnio estampado no rosto que buscara equiparar as duas equipes em número de jogadores.
Os corpos faziam, guiados pelo movimento da bola, verdadeiros desenhos pelo campo. Ora comprimiam-se para delírio dos técnicos que presavam pelo esquema tático definido dias antes do confronto, ora escorriam como se fossem fios de água a confluir rumo ao mar por diferentes vias. Aquele movimento prolongado apenas contribuía para que o nervosismo dos torcedores aumentasse. Nos telões espalhados pelo estádio, os lances mais dramáticos eram repassados numa constante desnorteadora afim de que o público não se irritasse com a demora das cobranças de faltas, escanteios e etc. Os franceses prosseguiam:
“O objeto de nossa história nós construiremos. Talvez o confronto entre Brasil e Uruguai seja apenas um pretexto para tratarmos da dominação do espetáculo pela tecnologia, Paul. Agora mesmo um francês deve estar imerso numa compreensão mais vasta deste jogo do que nós mesmos que estamos aqui. No futuro, um francês poderá ter uma compreensão infinitamente maior do que foi este jogo do que nós que estamos vivenciando-o.” E após uma pausa, François prosseguiu. “Podemos elencar todos os itens aqui mencionados e elaborarmos a história do confronto entre Brasil e Uruguai. Integraríamos itens e fatores numa rede de significados. Partiremos de uma questão e depois buscaremos onde encontrar as respostas pra tais questões. Tornaremos fatos aparentemente banais em focos condutores de nossa narrativa...”.
Durante o intervalo os colegas acordaram mais detalhes sobre a história que teceriam. Paul deixou-se levar pela magnitude do espetáculo:
“Você falando tudo isso me traz uma sensação boa. Nesse presente, minha atenção transviou-se. Reside unicamente na aflição da torcida a ansiar por um gol que não veio. Não é mais a partida que se trava no campo que me atraí, é a história da inquietude dos torcedores! Olhe, François, até os holofotes do estádio miram os torcedores da partida. O gol que certamente virá não é importante, ao menos pra mim. Olhe aquilo! O que me interessa é a inquietude daquele rapaz. O que ele retira do bolso?”
O rapaz retirava do bolso uma faca.

Segundo tempo.
O que houve antes da partida? Não importa. Nossa história que trata do encontro entre os franceses, na final da Copa do Mundo de 2014, que tencionaram escrever uma história do embate entre Brasil e Uruguai começa a partir do jogo, no máximo a partir de seu antes imediato. Mas então começa a partir do antes imediato, que é na verdade seu começo real.
“Só podemos falar desse jogo na medida em que ele aconteceu. Se aconteceu teve um começo. Um ponto inicial que pode ser metaforizado na imagem da ponta de uma agulha. Ou então, já acontecia antes, conforme os homens ansiavam por ele ao aguardarem o cumprimento do calendário geral da Fifa? Sim, acontecia no tempo da espera, da expectativa. O agir faz o tempo. Foi o apito do juiz que marcou o início do jogo. Foi o mesmo apito que marcará seu fim. Mas o jogo começara antes dos noventa minutos. Na certa, não acabará depois”.
“Então essa partida precisa acabar para ter começado?” questionou François?
“Na verdade, teremos apenas o todo da partida quando ela efetivamente acabar. Definitivamente, literalmente, a partida para aquele rapaz não acabou. O tempo arrastou-se, fez corpo mole. Ele agiu e antecipou o fim da partida que para ele acabou ali, não?”
“Aporia maldita! Estamos aqui, e veremos que o jogo irá acabar. Foi a vida dele que acabou, não o jogo.”
“E a partida também, visto que para o torcedor o momento final dela foi quando ele encerrou-se em seu desassossego. Ele não viu o fim da partida.”
“Mas ele sabia que a partida iria acabar”.
“Aporia desafiante! Então ele viu o fim da partida. No presente do futuro, ele vislumbrou o fim da partida. A morte na verdade foi uma maneira de fugir do resultado bruto. Sim, ele viu o fim da partida, mas chovia torrencialmente. Ele estava perdido pelo campo. E não conseguia discernir mais quais eram os jogadores de seu time. Olhava o placar eletrônico e um zero a zero cismava em permanecer infinitamente. Ele previu o fim do jogo, mas não previu seu resultado, talvez tivesse medo. Daí a morte como solução. A partida acabou e não acabou para ele, as duas possibilidades não se anulam.”
Tanta elucubração não permitiu que os jovens acompanhassem o movimento que deu no gol.

O gol
“Mas em que ponto do espaço-tempo haveria começado esse movimento que resultou no gol? Quando foi o começo do gol? No choro do goleiro que falhou? No golpe que o atacante deu na bola. No chute do outro goleiro que lançou a bola direto para o lateral esquerdo do seu time? No apito inicial do jogo que motivou alguma sensação boa para o goleiro do time vencedor? No dia do nascimento do goleiro que deu o chute certeiro para o lateral que chutou para o atacante que fez o gol fazendo o outro goleiro chorar? No dia do nascimento da mãe do goleiro?! Céus! É isso, François, depende! É o tecer da intriga que nos imprime uma sensação de tempo, François!”
O gol mesmo, certeiro e concreto, partiu, como disse Paul, do golpe que o atacante desferiu na bola. A velocidade foi tamanha que mesmo com o telão eletrônico reproduzindo o gol em câmera lenta, ficou difícil para o público acompanhar o movimento da bola. É que existem alguns instantes presentes que nossa percepção humana não é capaz de acompanhar.
É que o tempo arrasta-se em duas direções. Ao infinito e à sua máxima compressão.

Depois
Depois é o fim. O fim da partida que parte do apito final. O público despertando. A consciência de que a vida dura não dá pausa. Pessoas dispersando. Cada um rumando para os pontos de ônibus. Uns alegres, festivos, outros tristes, ainda mais aflitos. No campo, festa pra uns. Um torcedor do time vencido chora como uma criança, agacha e morde o gramado, rasgando-o como se ele fosse o juiz, o qual era visto como o culpado por favorecer time adversário. Com a boca suja de terra, rasga a camisa e grita numa convulsão apocalíptica.
Depois ainda. O vazio do campo. Os faxineiros recolhendo papéis, confetes, a camisa rasgada. O silêncio de um campo que foi o palco de um confronto que poderá entrar para a história do futebol mundial, ou poderá ser esquecido pela ação certeira do tempo. Os colegas franceses poderão contribuir para a lembrança ou para o esquecimento, tudo dependerá da história que saíra desse encontro.

Magno Henrique de S. Freitas


Trabalho para o curso de Teoria da História II - Professor José Vasconcelos.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de História.


Um comentário:

  1. Bom texto, optou por colocar no diálogo as diversas possibilidades da história. Poderia ter trabalhado também o conceito de narrativa.

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