domingo, 22 de setembro de 2013

Resposta ao Exercício

Furet: Olá, companheiro Ricoeur, como tem estado?
Ricoeur: Estou bem, amigo Furet. E as pesquisas?
F: Resolvi dar uma pausa, e assistir ao jogo. Perdi o hino, mas não pretendo perder essa partida.
R: Novamente Brasil e Uruguai, não te lembra nada?
F: Copa de 1950 no Brasil. O Brasil perdeu de 1 a 0.
R: As pessoas ficaram muito abaladas na época. Perder em casa não é pra qualquer um.
F: O estádio estava lotado, muitas pessoas estavam na expectativa.
R: O Maracanã era um estádio consagrado na época, construído às pressas para receber a Copa.
F: Não vamos ver o jogo?
R: Estamos vendo, olha lá os jogadores correndo atrás da bola.
F: Eu estou analisando o esquema tático.
R: Aquele monte de número que no final pouco importa?
F: Importa e muito, companheiro. Assim você tem uma ideia do que o técnico pretende com a equipe.
R: Mas isso não define o jogo, até porque a flexibilidade dos jogadores é fundamental.
F: Você sempre querendo analisar os personagens...
R: E você sempre querendo analisar números. Não me diga que continua fazendo isso com História...
F: A narrativa morreu. Isso é coisa do Passado!
R: A gente estuda o Passado, esqueceu?
F: Estudar uma coisa, narrar é outra.
R: Não é não, caro amigo. A narração faz parte da investigação, e é a melhor forma de se contar uma História.
F: A narrativa cria uma ilusão de onisciência da História, como se você pudesse contar tudo o que aconteceu e como aconteceu contando uma historinha. As pessoas se transformam em personagens, e o historiador, em romancista.
R: Deixa de recalque, você transforma as pessoas e os fatos em números. Reduz as pessoas em estatísticas e os fatos em repetições constantes.
F: Eu faço ciência. Eu estudo os ciclos históricos, as repetições, as oscilações numéricas. Eu faço da História uma ciência. E você está perdendo o pênalti.
R: Putz, é verdade. Gol do Uruguai. As pessoas já estão falando de repeteco.
F: E a gente discutindo nossas teorias.
R: Você vai falar que faz ciência, só porque brinca com números.
F: Você fala que faz História contando história. Onde já se viu...
R: Mas eu faço, tanto quanto você. Narrativa histórica não é repeteco, é uma forma de abordar amplamente os fatos, de forma leve e criativa. É muito gostoso ler um bom livro de História.
F: Só que você cria personagens, não analisa pessoas. Esquece as estruturas. Matou a longa duração. E sim, parece um repeteco de Tucídides.
R: Tucídides não conheceu Santo Agostinho, meu caro. Você ainda me anacroniza...
F: Olha quem fala de anacronismo. Como se não houvesse anacronismo em narrativa.
R: Anacronismo existe em todo lugar, inclusive em análise serial.
F: Análise serial é Futuro.
R: Mas o que seria o Futuro? Você sabe o que é o Tempo?
F: Sei que acabou o Primeiro Tempo, está 2 x 0 pro Uruguai. A gente nem viu o jogo.
R: Agora que entendi por que as pessoas estão começando a sair do estádio.
F: Vou comprar uma cerveja, já venho.
R: Eu vou ao banheiro.

[...]

R: Você demorou de novo.
F: Eu estava no banheiro.
R: Perdeu o gol do Brasil. De falta. Até alguns voltaram para ver o jogo.
F: Mas o estádio está estranhamente vazio. Uns 60% do público presente no Primeiro Tempo foi embora.
R: Para um estádio lotado, é bastante gente.
F: Eles poderiam escutar nossa discussão pelo menos.
R: Vão dormir com você falando, ou vão preferir o jogo. Aliás, eles vieram para isso.
F: Sim, não pra ouvir histórias...
R: Falou bem: a História é uma história. Só que, diferentemente de outras narrativas, esta é baseada na realidade.
F: Mas é uma narrativa. Toda narrativa tem sua parcela de ficção.
R: A narrativa precisa da imaginação do historiador, pois só a análise não permite relacionar os fatos entre si.
F: Aí se encontram os erros...
R: E as possibilidades. E a discussão.
F: Os números não mentem...
R: Mas mentem e muito. Tudo é relativo. Usar números e séries documentais para garantir precisão historiográfica não deixa o trabalho imune a erros. Não esqueça isso, caro amigo.
F: Companheiro, não me esquecerei de suas sábias palavras. Olha, mais um gol do Brasil, teremos prorrogação.
R: No intervalo vou comprar pipoca. Quer?
F: Sim. Compra um saquinho pra mim.
R: Pelo menos vamos ficar com a nossa boca ocupada no lugar de ficar discutindo História.
F: Supostamente viemos aqui para ver o jogo.
R: Não, a gente veio aqui pra falar sobre narrativa e história serial.
F: Culpa de quem está escrevendo que não nos permite apreciar o jogo!
R: Inclusive, o jogo já está acabando...
F: Bom, não teremos uma repetição. Os fatores mudaram.
R: Não são as mesmas seleções de 60 e poucos anos atrás. O estádio não é mais o mesmo de antes. Tudo mudou.
F: Mesmo assim são seleções do Brasil e do Uruguai no Maracanã na final da Copa.
R: Para sua História serial seria o mesmo evento, né?
F: Mas é o mesmo evento!
R: É e não é. Olha o resultado é diferente... NÃO ACREDITO!
F: Gol do Uruguai no último lance!
R: Vamos sair daqui antes que os gatos pingados quebrem o estádio.
F: Podemos ainda comprar pipoca?

Postado por Renata Garcia, noturno

5 comentários:

  1. "Deixa de recalque" define tudo o que eu queria dizer sobre esse assunto! Obrigada por isso, achei divertidíssimo ;)

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  2. Longo diálogo, ricamente ilustrado - quase caricato - da tensão argumentativa entre as duas historiografias e, por isso mesmo, bem claro (gostei muito!). Compreende a duração do jogo inteiro: eu definitivamente não gostaria de estar na fileira à frente desses dois!
    Me parece que a colega leu bem os dois textos. Parabéns!

    Eudes de Pádua, Nº USP 5995591

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  3. A dinâmica do texto faz com que o assunto flua, muito interessante! Mas faria uma ressalva acerca da ideia de que Furet queria que a História fosse uma ciência... Creio que o instrumental possa ser científico, mas a História, por indeterminação do seu objeto de estudo, não configuraria uma ciência, nem para ele mesmo...
    Alexandre Rocha da Silva, 7164782

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  4. Atráves do dialogo, Renata conseguiu expressar muito bem o atrito entre as concepções dos dois autores, que ficaram bem sumarizados no trecho:

    " F: Os números não mentem...
    R: Mas mentem e muito. Tudo é relativo. Usar números e séries documentais para garantir precisão historiográfica não deixa o trabalho imune a erros."

    Apesar de que talvez seja dificil usar a expressão "mentira" nessa discussão, pois acredito que Ricoeur não se oporia a tal tipo de escrita da História, mas apenas à pretensão de objetividade que ela implica.

    E parabéns pela coragem de ser a primeira a postar kkkkk, abraços!
    Rogério Ricciluca Matiello Félix NºUSP 7198380

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  5. Texto bastante ágil, despretencioso mas muito representativo das discussões do curso. Talvez a preocupação com a objetividade e a metodologia, incluindo aí as séries e comparações, tenha levado à palavra "ciência" no diálogo, mas concordo com o que disseram acima, que dificilmente Furet defenderia desse modo a História como ciência. De modo geral, o diálogo ficou bastante orgânico.

    Obs - "Taís - história" é a estagiária.

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