segunda-feira, 30 de setembro de 2013

No novo Maracanã

Diante de uma arquibancada verde e amarela que transbordava de euforia (nos limites do ordenamento numerado dos assentos do novo Maracanã, é claro) os franceses Paul Ricoeur e François Furet acomodam-se na espera no início do jogo, observando silenciosos a euforia, até que, despretensiosamente, Furet comenta:
- O Brasil realmente não aprende a lição, não é certo Paul? Tremenda euforia em torno dessa Copa, e agora essa final com o Uruguai... foi assim que eles tomaram aquela peia no mundial de 50. É incrível que eles repitam esse cenário!


Ricoeur, até então com um olhar compenetrado no campo, não resiste à piada e de golpe responde:
- Nossa, logo você François, falando em História mestra da vida?

- Como? responde Furet contrariado, ao que Ricoeur reage com um sorriso maroto. - Ora Paul, não se trata disso... foi só uma observação. Veja o espírito dos torcedores brasileiros nesse momento, essa é a copa em que a melhor seleção do mundo é a anfitriã, não há dúvida de que o favoritismo é deles. Desde que a Espanha foi eliminada eles já se sentem campeões, entretanto é inevitável lembrar que em 1950 a situação era semelhante. Há 64 anos o Maracanã, na época o maior estádio do mundo, foi inaugurado especialmente para ser palco da vitória brasileira, o que se revelou um verdadeiro fracasso.

- Não há dúvida François, responde Ricoeur com mais seriedade, a semelhança é sedutora, e eu não vou negar o passado, mas me admira que justamente você, um crítico apaixonado do determinismo histórico, esteja estabelecendo uma conexão entre estes dois acontecimentos separados por 64 anos de História.

- Ora Paul, é claro que a História não deve ser munição para nenhuma afirmação do presente, no entanto estamos agora falando de futebol! E o jogo já vai começar, veja, o juiz alemão acaba de dar o apito inicial.

- Desculpe François, não posso deixar de fazer algumas observações, naturalmente sem prejuízo da nossa apreciação da partida. Não importa muito a natureza de seu comentário, é uma interpretação sobre o passado na medida em que você concatena alguns eventos específicos do passado, construindo assim uma narrativa sobre ele, que é portadora de significados. São trazidas simbologias sobre esse passado, e isso, você sabe, a essa altura do campeonato, tem implicações...

- Já basta Paul! História é História, futebol é futebol! Esse é o problema de vir ao estádio com um filósofo... já não bastasse o ruído destas cornetas insuportáveis! Quando entraram na moda? Na Copa da África, não foi? Já deve ter algum colega defendendo isso como contribuição do Terceiro Mundo... pelo menos já está no fim esse 1º tempo sem gols!

- Nossa, já? O primeiro tempo já acabou François?

- Como já? Foi interminável Paul!

- Que incrível é a experiência temporal para cada um de nós, não é mesmo François? Veja só, eu nem me dei conta. Vamos comprar alguma bebida enquanto esperamos o intervalo? Você não ficou chateado com minha provocação, não é mesmo?


Durante o intervalo os dois não puderam conversar pois demoraram muito para se fazer entender ao atendente que vendia bebidas, e logo tiveram que voltar para não perder o início do 2º tempo. Furet ainda contrariado retoma a discussão:
- ... mas para fechar a questão sobre meu comentário Paul, enquanto historiador, se fosse minha intenção analisar o passado eu a deixaria bem clara, e naturalmente eu faria uma questão que me levaria a algumas fontes, em seguida classificaria os dados obtidos a partir delas, e a análise do resultado seria apresentada numa bela narrativa, mas jamais atribuindo correlação causal com o present... Gol?! Gol?! Gol do Brasil?!!! Putain! Putain! Logo no início do 2º tempo?!!!! Vê?! Você vê?! Me diga agora?!?!


A torcida entra em fúria (em seus assentos numerados, é claro), Ricoeur, depois de alguns minutos de reflexão, se volta pra Furet e diz:
- Paul, veja bem, aquele seu comentário para mim não foi necessariamente um problema, mas conhecendo sua trajetória intelectual, me parece que houve uma concatenação de fatos que atribui certo sentido à História. Você estabeleceu o marco inicial de 1950, e já está traçando algumas hipóteses para o desfecho dessa partida, qualquer que seja: se o Brasil ganha, é um acerto de contas com esse passado e, portanto com a História; se o Brasil perde, é uma lição de História, que aparentemente não está do lado deles. De todo modo, eu como ouvinte acabo estabelecendo uma interpretação do seu comentário, que do meu ponto de vista, por sinal, dissimula sua preferência pela seleção uruguaia.

- Como?! Em absoluto Paul, minha posição nessa partida é neutra. Estou aqui somente observando as nuances do jogo, sem pretensão... não me faz muita diferença o vencedor, porque, você torce pelo Brasil?

- Não, eu não espero o desfecho com tanta paixão, me interessa mais apreciar o desenrolar, nem das escalações eu sei. Mas hoje em dia dizem que a FIFA já tem definido o resultado, que isso tudo não importa muito, é puro espetáculo.

- Ãh? Eu não acredito! Qual seria o sentido de apreciar o desenrolar então, caro Paul?

- Cautela meu caro François, observemos a partida, às vezes a História pode nos trazer surpresas...

- De acordo... e pelo andar da carruagem acho que vai acabar dando Brasil mesmo.

- Não sei, os uruguaios tem muita garra, tem um futebol rápido, podem virar o cenário, seria surpreendente. De minha parte darei um voto de confiança à garra charrua!

- Charrua? Que é isso Paul, um animal?

- Ora meu caro François, não seja tão francês, existe vida para além dos gauleses... Charrua eram os indígenas que habitavam o que é hoje território uruguaio, meu caro, dizem que nunca se deixaram civilizar... dizem também que os 3 últimos deles foram levados pra Paris. Na hora da peleja os uruguaios, pequeninos como são, sempre reivindicam essa herança.

- Por favor Paul, eu realmente não gosto muito de alimentar esse tipo de ilusão fundadora. Deve ser coisa daquele presidente esquerdista uruguaio, ôh necessidade de ficar tirando do túmulo o século XIX e suas ideologias fedorentas... Gol?! Gol do Uruguai?!!! Gol do Uruguai?!!!


O Maracanã emudece... todos silenciosamente sentados em seus assentos numerados.
- Vê? Eu nem sei se poderia dizer isso François, mas dissidente sofre viu... você e seus colegas revisionistas querem afirmar sua crítica às ideologias, e logo à esquerda, em tudo o que veem... as coisas não são bem assim.

- Absolutamente Paul, somos cientistas humanos e como tal não podemos nos eximir da crítica. Não denota em si uma postura política. Não somos desses.

- Ahã.

- E desde o início eu alertara sobre esse "Já ganhei" brasileiro.

- Eu me lembro... mas você rechaçou a garra charrua agora.

- Veja bem Paul, é uma questão de rigor de ofício, a História tem suas peculiaridades... para afirmar isso seria necessário buscar alguma documentação a respeito dos conflitos em que os charruas estiveram presentes, seja com os colonizadores europeus, seja com outros povos, etc., e somente a partir daí poderíamos afirmar algo a respeito dos charruas. Você entende? Mas ainda que tenham sido qualquer coisa, isso não atribui tal caráter ao povo uruguaio.

- Bom, e depois o chato é o filósofo...

- Gol do Brasil! Gol do Brasil! Você viu Paul? Eu sabia, só tá dando Brasil mesmo.

- Calma, ainda faltam 15 minutos...

- Por fim acabou sendo bom ter vindo, eu realmente nem fazia tanta questão, preferia ter ficado jogando tênis em Toulouse. Só vim mesmo porque agora o Brasil está super na moda na França, e os jornais para os quais eu colaboro insistiram muito, queriam que eu escrevesse algo sobre o assunto e tal...

- É... você gosta muito de tênis?


De repente os alto-falantes começam a comunicar algo em inglês, os sinais luminosos indicavam as saídas de emergência e logo os seguranças começam a conduzir a evacuação do local. A partida foi interrompida. Todos ficaram muito confusos no momento, ninguém sabia explicar ao certo o que estava acontecendo e somente no dia seguinte os franceses puderam ler no jornal o que realmente havia acontecido: um veículo em alta velocidade se chocou contra um poste de iluminação, provocando um curto circuito e em seguida a explosão do veículo, o que lançou chamas na estrutura de iluminação do estádio. A partida teve de ser interrompida e o estádio evacuado em cumprimento às normas de segurança da FIFA. Fora o condutor do veículo, o incidente não causou mais mortes. Mas também ninguém lamentou muito a morte de José, o condutor. Era um velhinho de 84 anos, brasileiro atípico que nunca se interessara muito por futebol. Ele não tinha família, havia tomado a decisão de nunca mais se unir a mulher alguma em 1950, depois que sua noiva Judite, o deixou para partir com Ramón, um jovem uruguaio que ela conhecera na praia de Copacabana, um dia antes daquela derrota testemunhada por quase 200 mil brasileiros no Maracanã.

Um comentário:

  1. Texto muito bom de ser lido, com humor ágil e inteligente. Realizou o diálogo entre os dois confrontando suas ideias, mas de maneira leve, descontraída.

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