segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Futebol e narrativas equivocadas

— Amigo Paul, quantas mentiras serão contadas a partir deste espetáculo que veremos hoje?

— Não entendo o que quer dizer, François. A que tipo de mentiras você se refere?

— A história oficial diz que 200 mil pessoas viram in loco a final da Copa do Mundo de 1950, neste mesmo estádio, com a participação dessas duas mesmas equipes que entrarão em campo daqui a alguns minutos. No entanto, ao longo desses últimos 64 anos pelo menos umas 800 mil pessoas (perdoe-me pelo exagero) afirmaram estar presentes aqui naquele dia. Pelo mundo afora, até mesmo homens que nunca estiveram no Brasil ajudam a contar como foi a tragédia vista por estas arquibancadas, às vezes com detalhes descabidos e fantasiosos. Há quem diga que trabalhava como sorveteiro ou vendedor de pipocas, ainda na adolescência; jornalistas esportivos dizem que algum parente os trouxe, ainda meninos, para ver o Brasil finalmente ser campeão. No final das contas, o que vale é a narrativa predominante?

— São outros tempos, meu caro François. Creio que certos detalhes da narrativa envolvendo um jogo de futebol já não podem ser repetidos em pleno século 21. No entanto, apesar de todas as ressalvas que tais relatos possam conter, não creio que possamos esquecer o ponto de vista de Santo Agostinho: o que existe, no final das contas, é o presente do passado. Por meio da memória é o ser humano que faz a história acontecer, a partir de suas ações e, quando tratamos de um assunto como o futebol, também a partir de suas paixões.

— Se pensarmos com calma, talvez vejamos que o evento em si mesmo não significa nada – ou muito pouco. Há 64 anos este Maracanã (nem parece o mesmo, não?) assistiu a um grande time ser suplantado por outro que não era tão grande, mas que se agigantou naquela tarde. Talvez, Paul, o que tenha havido aqui (entre mentiras e verdades) foi uma sucessão de fatos memoráveis (a lotação do estádio, o clima de “já-ganhou”, a atuação fantástica de Ghiggia). Juntos, esses fatos se cristalizaram como parte de uma narrativa histórica.

— Talvez a história saia um pouco enfraquecida desta final de hoje. Mas ela não poderá ser ignorada no futuro, seja a partir de verdades, mentiras ou alguns exageros que são cometidos pelo emocional que envolve um evento como este. Hoje certamente ocorrerão aqui diversas ações individuais ou coletivas que, reunidas, se tornarão história.

— É possível, é possível. Ainda penso que a interpretação do que possa ocorrer aqui hoje precisará ir além do que podemos chamar de realidade histórica. Até hoje não sabemos ao certo o que houve com Ronaldo em 1998, não? Se voltarmos a 1950, será que se o Brasil contasse com Heleno de Freitas o quadro teria sido outro? O futebol, sim, é uma ciência completa, meu caro. A História é bem mais simples.

— Isso dá margem a outra discussão, François. Mas antes de falarmos disso, chame o sorveteiro, por favor. E tente esconder melhor essa camisa do Uruguai debaixo da jaqueta...

Por Fernando Damasceno / Noturno / 647-3211

Um comentário:

  1. Bom texto, simples e conciso, apresentou as ideias de narrativa, memória, paixões e significado do evento histórico. Poderia ter desenvolvido mais o confronto entre eles. Mas de qualquer modo, o mérito do texto foi sintetizar temas importantes dos autores.

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